Crianças

Estatuto da Criança e do Adolescente em condomínios

Alguns pais recorrem ao ECA para defender seus filhos em conflitos com vizinhos. A falta de equilíbrio desse uso pode prejudicar o condomínio

Por Inês Pereira

02/05/19 10:39 - Atualizado há 4 anos


O síndico sabe bem o quanto conflitos que envolvem crianças são difíceis de lidar. E é fácil entender. Quando o assunto envolve filhos, uma parte dos pais costuma ser movida por uma carga emocional desproporcional. 

Agora imagine esse balaio de gatos com um ingrediente extra – o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Um exemplo corriqueiro: uma criança jogando futebol na área externa, por onde os condôminos circulam. Certamente naquele local não é permitido que as crianças brinquem, muito menos com bola.

O condomínio adverte o pai sobre a regra de locais determinados para as crianças brincarem, e ele recorre ao ECA para afirmar o direito que seu filho tem de brincar.  

“Existe uma parcela de pais que acha que pode tudo e, nesse caso, recorre ao ECA em qualquer coisa que aconteça; mas não olha para o próprio filho. Isso é muito ruim”, analisa a educadora e pedagoga Anna Mariano. 

Mas afinal, até onde se apoiar no Estatuto está certo? A primeira coisa a se fazer é saber o que é o ECA. Só assim, você terá condições de entender o que os pais exigem a partir das normas. 

O que é o ECA 

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069) foi criado em 1990. Seu grande objetivo é proteger integralmente as crianças (0 a 12 anos incompletos) e os adolescentes (12 a 18 anos e, em alguns casos, até 21 anos). 

O ECA é um documento extenso, com 241 páginas. No caso do segmento condominial, alguns trechos interessam especificamente. Separamos dois principais:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 16º O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:

I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais; IV - brincar, praticar esportes e divertir-se; V - participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;

Em quais situações é aplicável em condomínios?

A rigor, toda pessoa pode recorrer ao ECA e à Constituição Federal. O advogado Ricardo M. Cabezón, que presidiu o Comissão Especial de Direitos Infantojuvenis da OAB-SP, especialista em Direitos da Criança e do Adolescente, esclarece:

“A Constituição estampa nos termos do Art. 227 o princípio da proteção integral e assegura direito à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocar a salvo de toda forma de discriminação e opressão, entre outras garantias”. 

No condomínio, algumas situações merecem a aplicação do Estatuto:

Nesses casos, o ECA poderá ser usado para um processo judicial contra a pessoa e o condomínio

Em quais situações não é correto usar o ECA em condomínios? 

“O ECA é uma legislação que se aplica sempre – tanto do portão para fora do condomínio, quanto do portão para dentro; da porta para fora do apartamento e da porta para dentro. Porém, existem regras específicas de disciplina que estão no regulamento interno do condomínio e também se aplicam do portão para dentro”, ressalva Márcio Rachkorsky, advogado, considerando a vida em condomínio.  

Muitas situações podem motivar os pais a recorrerem ao ECA: barulho, brigas, má utilização das áreas comuns, bullying ou mesmo brigas de babás contra crianças, tentando proteger ou tomar partido das crianças que elas cuidam. 

“As pessoas não podem se fazer valer de uma regra muito maior para descumprir uma regrinha muito menor”, reforça Rachkorsky.  

Para a psicanalista Carolina Scheuer, a lei entra quando a conversa termina. Ou seja, antes de recorrer ao Estatuto, há um caminho de entendimento para resolver as questões

“Muitos pais acham que os filhos precisam ser atendidos em seus desejos e protegidos contra quaisquer frustrações ou sofrimentos. Mas isso não pode cegá-los para olhar as demandas dos outros moradores, como  adultos sem filhos ou idosos”, diz Carolina. 

Dicas para amenizar o conflito e fazer valer as regras do condomínio

“Em casos de situações desagradáveis, os pais sempre se acham no direito de buscar o Estatuto; mas sempre se eximem dos deveres e direito de guarda (Art. 1634 do Código Civil e Art. 22 do Estatuto da Criança) que lhes resultam no direito de preservar e guardar suas crianças”, diz Roberto Piernikarz, diretor da BBZ, administradora de condomínios.

Piernikarz destaca que é possível propor acordos de convivência por meio de Regimento Interno e Normas de utilização das áreas comuns, contendo os horários permitidos. O registro das câmeras são sempre de grande valia

Também pode ser aprovado em assembleia a contratação de equipe especializada na tratativa com as crianças e adolescentes, recreação e até de orientadores que ajudem o trabalho do síndico na contenção de conflitos.

O advogado Ricardo Cabezón acrescenta: “Estabelecer política de horário e local adequado para a prática de jogos, brincadeiras, comemorações em datas festivas, bate-bolas, uso do elevador social etc., é uma preciosa ferramenta de pacificação social que encontra amparo em nossa legislação”.

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Conclusão

Com certeza, todo cidadão deve considerar um documento tão importante como o Estatuto da Criança e do Adolescente

Mas, pensando no condomínio, cada qual tem o seu conjunto de regras que compõem o regimento interno. Essas regras foram constituídas para preservar o bem-estar da coletividade, e não do indivíduo. Por isso, é tão importante que sejam respeitadas.

Ao mesmo tempo, ao conhecer o ECA, o síndico vai ampliar o seu olhar. Ele se sentirá mais bem preparado para lidar com os problemas da sua comunidade, e até atuar como um mediador mais seguro e justo, se for preciso. 

Fonte: Ricardo M. Cabezón (advogado, presidiu o Comissão Especial de Direitos Infantojuvenis da OAB-SP, especialista em Direitos da Criança e do Adolescente); Márcio Rachkorsky (advogado); Roberto Piernikarz (diretor da BBZ, administradora de condomínios0; (Anna Mariano (educadora e pedagoga) e Carolina Scheuer (psicanalista).