07/02/24 06:59 - Atualizado há 9 meses
Quando coreografias de poucos segundos, transmissões de jogos online e até mesmo conteúdos sensuais se tornam fonte de renda, fica impossível discordar que as redes sociais mudaram o conceito de trabalho no mundo contemporâneo, afetando também as dinâmicas de convivência em condomínios.
Com limites mais flexíveis para o home office e o entendimento de que áreas comuns são uma extensão do próprio lar, produtores de conteúdo e síndicos têm encontrado dificuldades para entrar num consenso sobre o que é ou não permitido nesses ambientes.
Segundo uma pesquisa realizada pela Influency.me, o mercado de influenciadores deve crescer ainda mais em 2024, graças ao investimento em campanhas digitais. Deste modo, conhecer os direitos previstos na legislação e estabelecer regras claras dentro do condomínio é fundamental para evitar transtornos.
Nesta matéria, você confere depoimentos de gestores que já enfrentam os dilemas dessa nova realidade, que abrangem da perturbação do sossego ao atentado ao pudor, e as recomendações jurídicas para enfrentá-los. Boa leitura!
Síndica moradora de um condomínio em implantação na cidade de São Paulo, a assinante do SíndicoNet Clube, Ivete Padrão, conta que as áreas comuns têm sido procuradas principalmente pelo público mais jovem, que não consegue produzir conteúdos dentro dos apartamentos em obras.
Segundo ela, a situação já se repetiu em quatro ambientes: área de jogos adultos, spa, piscina e área office do condomínio.
"Busco sempre instruir os funcionários a orientar os moradores quando verificado o uso indevido de uma área, assim eles acabam evitando situações como essas. Aqui no condomínio tem dado certo e, como as chaves dos recintos ficam a cargo da portaria, conseguimos gerenciar bem isso", diz a gestora.
Conforme disposto no artigo 5º da Constituição Federal, "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".
Dessa forma, é preciso reforçar que produtores de conteúdo devem respeitar limites nas áreas comuns.
"O condômino pode filmar dancinhas na piscina, por exemplo? Resumidamente, pode, mas é importante lembrar que todos os direitos têm como limite a afronta aos três S previstos no Código Civil: sossego, salubridade e segurança. Caso outras pessoas ou o próprio condomínio sejam expostos sem autorização ou colocados em risco de alguma forma, a prática já se torna proibida", explica o advogado especializado em Direito Condominial, Jaques Bushatsky.
Outro ponto sensível que pode levar a penalidades e até à desvalorização do condomínio é o constrangimento da vizinhança, como o barulho excessivo ou a insinuação sexual, abordadas mais abaixo nesta reportagem.
É válido ressaltar, ainda, que prédios estritamente residenciais não podem ter sua destinação alterada. Logo, as famosas publicidades para redes sociais e demais conteúdos que gerem renda para o morador devem ser produzidos fora do condomínio, a menos que estejam previstas no Regimento Interno ou tenham sido aprovadas previamente em assembleia.
Apesar da instrução de moradores ter funcionado, no momento, para evitar problemas do gênero, a síndica Ivete externaliza uma preocupação: "Esse tipo de atividade está crescendo e acho que a falta de um espaço destinado a isso pode trazer transtornos futuramente."
Atentas a essa necessidade, algumas construtoras já têm previsto a inclusão de áreas comuns voltadas exclusivamente para produtores de conteúdo em novos empreendimentos. Este é o caso da Patriani, que começa a entregar os primeiros edifícios contemplados com o chamado 'Espaço Influencer' ao final de março.
De acordo com Mayra Brunelli, arquiteta e coordenadora de Áreas Comuns da empresa, a inovação reflete a tendência de aumento do número de pessoas que trabalham com a criação de conteúdo para a internet ou que têm essa prática como um passatempo.
"Pensando nos diferentes conteúdos que podem ser criados dentro desse ambiente, nos últimos lançamentos, além do equipamento adequado de iluminação e da tela chroma key, também estamos colocando tripés que facilitam a filmagem e um conjunto com microfone dinâmico e TV para a gravação de podcasts", detalha Brunelli.
Moradores que possuem algum tipo de e-commerce também devem ter à disposição araras para expor seus produtos, enquanto os que trabalham com aulas online poderão utilizar uma lousa instalada no local. Além disso, todo o mobiliário e decoração foram pensados para compor um cenário "instagramável".
Quanto às regras para espaços criados especificamente para filmagens e sessões fotográficas, "a recomendação é que possuam um sistema de funcionamento por reserva de horários. Assim, acreditamos que não haverá grandes conflitos entre os usuários", complementa a arquiteta.
Para evitar incômodos com ruídos excessivos, o Espaço Influencer é construído em áreas mais tranquilas dos condomínios, contando com lajes, contrapisos e caixilhos adequados ao conforto acústico previsto na Norma de Desempenho (ABNT NBR 15.575).
Sucesso na novela "Terra e Paixão", obra da rede Globo que teve seu desfecho em janeiro, a comediante Tatá Werneck interpretou a personagem Anely, produtora de conteúdo adulto que levava uma vida dupla para fugir de julgamentos.
Assim como na trama fictícia, o assunto é uma polêmica da vida em condomínio que pode ser tratada de forma bem humorada, e por outro lado tem a capacidade de gerar grandes constrangimentos à vizinhança.
Numa das histórias apresentadas na série "Causos de Condomínio", lançada pelo SíndicoNet em 2023, o síndico profissional Sylvio Levy revelou um dilema enfrentado há seis anos com quem acredita ter sido uma das precursoras das modelos que vendem conteúdos sensuais online em plataformas especializadas.
Incomodada com gemidos sexuais frequentes, que já vinham perturbando o sossego de sua família há algum tempo, uma condômina idosa buscou a ajuda do gestor.
Antes de abordar a moradora acusada de provocar o barulho, Sylvio consultou o controle de acesso do residencial e, para sua surpresa, as visitas ao apartamento eram raras. Tendo confirmado que não se tratava de um caso de prostituição, a medida adotada foi ter uma conversa franca com ela.
"Acabei solicitando a um membro da minha equipe, que era do mesmo gênero que a influenciadora, fizesse essa mediação, pois achei que seria algo menos constrangedor e nunca sabemos qual será a reação da pessoa. Minha única orientação foi tratar o assunto com leveza, o que teve efeito positivo", detalha Levy.
Assista abaixo ao episódio sobre Gemidos Sexuais, da série Causos de Condomínio. É só dar o play!
Apesar dos ruídos amorosos não serem raros em condomínios, levando ao acionamento do síndico quando a convivência se torna insustentável, Sylvio confessa que ainda não se sente preparado para lidar com esse tipo de situação.
"É difícil separar um pouco nossos princípios e valores, mas tudo isso faz parte do que estamos vivendo, especialmente com essa nova geração de produtores de conteúdo", conclui.
Outro fenômeno recente, que tem conquistado milhares de fãs pelo Brasil e costuma provocar atritos em condomínios, é o stream de jogos online, em que gamers dificilmente contém comemorações e xingamentos a plenos pulmões.
Em entrevista ao Podpah, o dono do perfil EltinOriginal na plataforma Twitch, Elton Jhon, contou que se por um lado a empolgação faz toda a diferença para manter os seguidores, por outro gera prejuízos de até R$ 8 mil reais em multas por barulho excessivo no condomínio. "Não recomendo fazer lives em apartamento", ele concluiu durante o bate-papo.
O próprio apresentador do podcast, Thiago Marques (Mítico), alegou que o isolamento acústico não foi suficiente para impedir que ele enfrentasse problemas com um vizinho ao fazer transmissões ao vivo em casa. Confira o relato em detalhes no corte abaixo:
Independente do tipo de barulho produzido pelos produtores de conteúdo dentro ou fora de unidades condominiais, não há dúvidas quanto às punições previstas nas leis que abrangem as esferas nacional e municipal.
Conforme o artigo 42 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/1941), exercer profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais, pode levar à prisão de até três meses ou multa.
Internamente, por determinação do Regimento Interno de cada empreendimento, o habitual é que após as 22 horas não seja admitido qualquer ruído excessivo, o que não impede que sanções sejam aplicadas a quem ultrapassar o limite da razoabilidade durante o dia.
Imagine acordar num dia ensolarado, abrir as janelas do seu quarto e se deparar com uma pessoa da unidade vizinha do jeito que veio ao mundo, fazendo striptease para uma tela de computador ou celular? Apesar de parecerem improváveis, ocorrências parecidas já foram registradas em condomínios e despertam a preocupação de quem mora com crianças e adolescentes.
No caso de quem é flagrado produzindo conteúdo adulto ou, eventualmente, circulando sem roupas dentro de unidades, os juízes costumam ser muito cautelosos e sempre avaliam se há o intuito de ser visto, bem como as provas apresentadas na acusação.
“Com relação à nudez, dentro de casa o condômino pode fazer o que bem entender. O importante é seguir a recomendação de manter janelas ou cortinas fechadas para não dar acesso à sua intimidade”, explica o advogado Jaques Bushatsky.
Para ele, o fato do interior da casa ou apartamento estar exposto ao público poderia abrir brechas para que se configure um crime, classificado como ato obsceno ou, popularmente, como atentado ao pudor. A pena, determinada pelo artigo 233 do Código Penal, pode chegae a um ano de detenção ou multa.
Enquanto isso, o artigo 234 ainda cita como ilegal a "representação teatral, ou exibição cinematográfica de caráter obsceno, ou qualquer outro espetáculo, que tenha o mesmo caráter". Logo, estariam enquadrados também os produtores de conteúdo que usam e abusam das insinuações sexuais.
Uma das modelos que mais faturam em plataformas como Onlyfans e Privacy, Flora Favaretto ganhou destaque na mídia em junho de 2023, após ser multada pelo condomínio em R$ 1,2 mil por produzir conteúdos na piscina de um residencial no Guarujá (SP).
Segundo a notificação, a moradora teria criado “severo constrangimento e embaraço aos demais condôminos, vários deles com crianças que convivem nas referidas áreas comuns de lazer" e "ocorreu no mínimo uso indevido das áreas de lazer com trajes de banho/piscina.”
Atualmente, Flora não vive mais no local e alega que evita ao máximo fazer até selfies em condomínios. Em entrevista ao SíndicoNet, ela descreveu a decisão tomada pela administração como arbitrária:
"Consultei as regras e um advogado especializado nisso. Realmente não existia nada me impedindo de gravar vídeos ou fazer fotos de biquíni ali, além disso não expus ninguém, muito menos extrapolei os limites do bom-senso. Sempre fiz conteúdos sensuais nas áreas comuns, até por entender que se tratam de uma extensão da minha casa, mas a maioria dos condomínios não está preparada para lidar com isso de forma imparcial."
Ainda de acordo com a influenciadora, o síndico demitiu funcionários que trabalhavam no dia do ocorrido e "fechou os olhos para o caso, que é de extremo preconceito e perseguição".
"As regras precisam ser mais claras e objetivas. E isso não quer dizer proibir de vez fotos e vídeos em áreas comuns. Muito pelo contrário, quero respeito com o meu trabalho e de todos os outros criadores, independente de serem do segmento sensual ou não", reinvindica.
Desde a pandemia, o conceito de residir e comercializar dentro de unidades condominiais foi flexibilizado brutalmente, levando condôminos à confusão.
"Se hoje podemos fazer reuniões profissionais e até gerenciar um pequeno negócio dentro de casa, qual seria o impedimento para realizar uma gravação para plataformas digitais nesse mesmo ambiente?", questiona Jaques. "O que não se pode é transformar um apartamento num estúdio que gere barulhos ou um número de visitas que fuja ao padrão da normalidade."
De forma geral, o recomendado é que as convenções sejam revisadas para contemplar situações que podem facilitar a gestão de questões relativas a produtores de conteúdo, como a instalação de comitês para análise de casos delicados, eliminando a necessidade de levá-los ao conhecimento de todos em assembleia.
Para Sylvio Levy, elaborar um bom Regimento Interno é de extrema importância.
"Nesse momento, o síndico pode solicitar apoio jurídico e até mesmo tirar proveito da experiência que a administradora tiver. Assim, é possível redigir bons termos que engessem aquilo que for possível para não prejudicar o condomínio", sugere.
O gestor aponta ainda que alguns dilemas podem ser mais fáceis de contornar, como na ocasião em que precisou solicitar diretamente ao produtor de um casal de famosos que parassem de realizar gravações de caráter comercial em áreas comuns, após reiteradas infrações.
"Geralmente, os condôminos nos acham autoritários por interferirmos no uso desses espaços, mas sempre uso o Regulamento Interno para dirimir qualquer dúvida, afinal seguir o que está ali disposto sempre nos traz tranquilidade", defende a síndica Ivete Padrão.
Tendo sido apresentados todos esses casos, você pode estar se questionando o que deve ser feito na prática, uma vez que as regras do condomínio já foram todas atualizadas. Confira abaixo os 4 passos ideais para acabar com conflitos com produtores de conteúdo em condomínios:
Como foi amplamente debatido na série recém-lançada do SíndicoNet, "Descomplicando a Comunicação", manter os condôminos bem informados sobre seus direitos e deveres é a melhor forma de garantir a harmonia da vizinhança.
Há inúmeras ferramentas à disposição para garantir que a mensagem chegue a todos: aplicativo de comunicação, como Nok Nox; cartazes impressos, telas nos elevadores, grupos de WhatsApp, entre outros.
No vídeo abaixo, o síndico pós-graduando em Mediação de Conflitos, Fabio Bortolin, detalha os principais benefícios de adotar um plano de comunicação. Assista:
Apesar da orientação reduzir significantemente o número de infrações, eventualmente os moradores podem cometer alguns excessos, exigindo a intervenção do síndico para que não ocorra uma escalada de atritos entre vizinhos.
Dessa forma, é preciso trabalhar constantemente sua inteligência emocional para abordar esse tipo de assunto com a maior cordialidade possível quando for necessário, lembrando-se de conceder o benefício da dúvida ao morador acusado, afinal, as denúncias nem sempre correspondem à realidade dos fatos.
Uma vez constatado que o condômino perpetua comportamentos em desacordo com o Regimento Interno, provocando transtornos aos demais, mesmo após ser procurado pelo síndico, medidas administrativas como notificações e advertências podem ser aplicadas.
A partir desse momento, um comitê com três condôminos voluntários já pode ser acionado para acompanhamento do caso.
Se não houver um grupo formado no condomínio, ainda é possível reforçar a necessidade de adequação às normas internas se valendo do fato de que a próxima etapa seria apresentar a situação em assembleia, assim, algo que é de conhecimento de poucas pessoas no condomínio, poderia se tornar público.
Em última instância, multas podem ser aplicadas conforme previsto nas regras internas. Com base em sua própria experiência, Sylvio Levy alerta que o jogo de cintura é o que mais importa nesse momento, pois o ganho que o influenciador tem com os conteúdos podem "valer esse gasto".
Muitas vezes, por se tratarem de inquilinos, não há também uma preocupação em seguir a política da boa vizinhança.
Assim, é válido analisar se a recorrência dos fatos pode caracterizar um comportamento antissocial, o que permitiria ao condomínio abrir um processo para expulsão do morador.
Como esses casos podem chegar até o Judiciário, é de extrema importância que provas sejam coletadas pelos vizinhos incomodados e pela própria administração, fazendo um trabalho conjunto para que a boa convivência seja restabelecida.
Agora que você já sabe quais são as regras que produtores de conteúdo devem seguir e quais penalidades são aplicáveis aos infratores, veja também os cuidados necessários com a exposição digital em condomínios!
Fontes consultadas: Flora Favaretto (influenciadora), Ivete Padrão (síndica moradora), Jaques Bushatsky (especialista em direito condominial), Mayra Brunelli (arquiteta da construtora Patriani), Sylvio Levy (síndico profissional).