Longe das asas do Plano Piloto
Brasília completa 54 anos provando que há muita vida fora do chamado quadradinho. Pelo menos 600 mil pessoas vivem nos condomínios horizontais, onde usufruem de qualidade de vida e segurança
Crianças experimentam a liberdade de correr e brincar, sem preocupações. Vizinhos se conhecem, muito além do educado porém superficial “bom dia” ou “boa tarde”. Juntos, eles veem os filhos crescerem e o passar dos anos. A convivência parece resgatar a antiga infância candanga, daqueles que exploravam as quadras em construção e faziam festinhas nos pilotis do Plano Piloto. Viver em um dos condomínios fechados de Brasília é sinônimo de qualidade de vida para quem fez essa escolha, apesar dos problemas que envolvem a regularização da maioria dos parcelamentos.
Os condomínios horizontais surgiram no Distrito Federal na década de 1980, diante da pressão da classe média por moradia e da vista grossa das autoridades. Hoje, são cerca de 500 parcelamentos, com mais de 600 mil moradores. Grileiros ocuparam terras públicas ou particulares irregularmente, parcelaram lotes e venderam as áreas a preços baixos. Os alvos eram fáceis: brasilienses em busca da casa própria, sem perspectiva de comprá-la no Plano Piloto. Rapidamente, áreas intocadas de cerrado se transformaram em extensos loteamentos, alguns em espaços vizinhos a regiões nobres.
A empresária Stefânia Leão Fernandes, com a família, decidiu sair da área rural para viver no Villages Alvorada. E destaca o valor da convivência, algo mais difícil no Plano Piloto: 'Morar perto dos amigos, frequentar a casa um do outro é ótimo. Aqui, os pais fazem revezamento de carona para levar os filhos à escola, é bem solidário', diz Stefânia. (Fotos: Minervino Júnior/Encontro/DA Press)
Se o sonho da casa própria se realizou para as famílias, outro permanece distante. Ter em mãos a escritura do terreno ocupado ainda é uma meta cheia de obstáculos. Como a maior parte das construções foi feita totalmente à revelia da legislação ambiental e urbanística, a grande dificuldade é adequar o que existe na prática às leis. Há parcelamentos feitos em terras de propriedade do GDF, em áreas do governo federal e em terrenos particulares. Além disso, muitos moradores construíram suas casas em áreas de proteção ambiental ou em terrenos reservados para a construção de equipamentos públicos, o que impossibilita o registro em cartório. Sem ou com escritura – já que, agora, existem os parcelamentos que já nasceram regularizados –, famílias constroem suas histórias de vida diariamente, nos condomínios de Brasília.
A Ponte JK é a vista do quintal da casa habitada pelo professor Filemon Félix de Moraes e sua família, dona de três casas no Villages Alvorada, à beira do Lago Paranoá, há quase duas décadas. “Não existia a terceira ponte quando nos mudamos. Viemos para cá porque tive de entregar o apartamento militar onde morávamos. Tinha só a churrasqueira e uma casinha, construímos aos poucos. O espaço, a vista e a tranquilidade são incomparáveis com a área central de Brasília”, relata Filemon, que pagou R$ 45 mil pelo primeiro lote.
Atualmente, não há projeções vazias no Villages Alvorada. Manter uma casa como a de Filemon, com piscina, espaço de sobra para a coleção de carros, churrasqueira e um grande quintal, não custa barato. São R$ 900 somente de conta de luz. Outros R$ 425 vão para o condomínio, sem incluir despesas com água, tratamento de esgoto (irregular, o condomínio usa fossas) e outras necessidades cotidianas. “É mais em conta do que muito apartamento no Plano Piloto”, pondera Carla Moraes, casada com Filemon.
O professor foi um dos primeiros moradores do Villages Alvorada. Todas as obras de infraestrutura foram realizadas pelos moradores. “Há alguns milhões investidos aqui. Existe uma briga para transformar o condomínio em quadra aberta, mas não é viável”, ressalta Filemon.
Dono de uma franquia de restaurantes, o cirurgião plástico Leonardo Melo Franco, vizinho de Filemon, usa helicóptero para se locomover em Brasília e nas regiões próximas. É o único barulho de trânsito que se escuta nas redondezas. No mais, apenas o canto de pássaros e risadas infantis, perto do parquinho.
Quando decidiu mudar-se para Brasília, há 11 meses, ele, a mulher e os dois filhos não tiveram dúvidas: optaram por viver em condomínio horizontal fechado. “É questão de qualidade de vida e segurança. Quero ter a certeza de que meus filhos estão bem-cuidados e protegidos enquanto eu trabalho”, afirmou Franca Laboissiere, casada com o médico e mãe de Anabela, de 6 anos, e Leonardo, de 4 anos.
A empresária Stefânia Leão Fernandes trocou a vida em uma fazenda pela moradia à beira do lago, no Villages Alvorada. “Morar perto dos amigos, frequentar a casa um do outro é ótimo. Os vizinhos se reúnem para churrascos, jogos de futebol e também para rezar.
Segurança é fundamental para quem escolhe esse estilo de vida. Um dos condomínios de alto padrão mais cobiçados de Brasília é o Reserva Santa Mônica, na DF-140, próximo a Santa Maria. O lote chega a custar R$ 300 mil. Apenas 10% estão à venda. O restante das 703 projeções já tem dono.
São 40 casas construídas e habitadas e outras 50 em obras. O acesso é único e controlado por biometria. Um imperceptível botão para situações de pânico pode ser acionado, em caso de tentativa de sequestro ou roubo. O alarme é acionado para a empresa de segurança, que tem contato direto com o posto policial mais próximo. Cercas elétricas modernas, instaladas inclusive em pontos estratégicos dentro da mata, reforçam o isolamento. O condomínio tem guardas em tempo integral, inclusive com vigilância armada.
Inaugurado em 2009, o condomínio tornou-se a menina dos olhos da classe média alta e dos milionários de Brasília, que desejavam viver com tranquilidade e ter uma vista privilegiada da Reserva Ecológica do Tororó. Nele, vivem políticos, grandes empresários, delegados federais, juízes e outras autoridades, além de servidores públicos, que são maioria. O perfil da vizinhança é composto principalmente de casais jovens, com um ou dois filhos, mas dispostos a aumentar a família.
O Santa Mônica nasceu regularizado e todos os moradores têm escritura de seus imóveis. Contam com estrutura de clube, composta de piscinas e saunas, quadras de futebol, basquete e tênis, cercadas por paredões rochosos e áreas verdes. A academia de ginástica e o salão de festas começaram a funcionar recentemente. O heliporto foi usado apenas duas vezes: por um empresário e pelos bombeiros, em época de incêndios florestais. A taxa de condomínio é de R$ 272, caso seja paga até o vencimento.
Encontrar tucanos, raposas, cobras e animais é comum nas ruas do Santa Mônica. “Esse contato com a natureza é maravilhoso e resgata valores importantes. Temos uma diversidade incrível aqui dentro, é um grande privilégio”, explica o administrador do condomínio, Fabiano Henrique Morais.
Graças à regularização, os lotes podem ser financiados pelo banco. A casa dos sonhos do analista de sistemas Anderson Aldi, que recorreu a um financiamento, demorou um ano para ficar pronta. Tem quatro quartos, um deles vazio, para abrigar visitas e, talvez um dia, o filho planejado, por meio da adoção. “Combinar segurança e tranquilidade é o ideal. Temos uma van que leva os moradores às áreas de lazer, as meninas têm amigos, brincam à vontade. Também fiz amizades e jogo futebol todas as terças e quintas aqui mesmo”, relata o morador Anderson Aldi. O trânsito é a única desvantagem da região. Ainda assim, em menos de 40 minutos, quando não há acidentes, Anderson e a família conseguem chegar ao Plano Piloto, onde as meninas estudam e os pais trabalham. “Aqui, a gente esquece o resto do mundo. Vale a pena”, diz Anderson.
Proporcionar uma infância saudável e feliz aos filhos é uma das prioridades de quem mora em condomínios nível A, fora do Plano Piloto. O Jardins do Lago, no Jardim Botânico, também nasceu regular, o que possibilita a infraestrutura ideal. O terreno é particular e, durante 12 anos, os donos negociaram com a Justiça e com o governo local a edificação. Somente depois do trâmite legal, os lotes foram ocupados. São 154 projeções, com 25 residências ocupadas e outras 52 em construção. Há dois parques infantis, minigolfe, fonte luminosa, quadra poliesportiva e de tênis.
A biometria também é a senha para entrar no Jardins do Lago, onde se vê um aparato de segurança pesado, com cercas e monitoramento 24 horas. Uma das regras do condomínio é o respeito à preservação do meio ambiente. É preciso manter 30% da área de cerrado nativo nas dependências comuns. “As crianças plantaram mudas de ipês. Colocamos o nome de cada menino ou menina em uma plaquinha, para que eles vejam no futuro. Fico feliz de proporcionar essa consciência de preservação às minhas filhas”, afirma o corretor de imóveis e síndico Eduardo Garcia.
Por acreditar em um modelo de vida mais pacato, o representante comercial Kleber Prado, 43 anos, mudou-se para o Bela Vista há 14 anos, depois de ser sequestrado embaixo do bloco na 415 Norte. "Percebi que não dava mais. Compramos um lote, construímos a nossa casa rapidamente e, desde então, estamos felizes aqui", conta. O filho caçula, Eduardo, faz aulas de futebol no próprio condomínio.
Pais de duas meninas, Isadora, de 6 anos, e Marina, de 2 anos, Eduardo e a mulher, Ana Paula Tolentino, também apontam a convivência entre os vizinhos como um dos atrativos. “Fazemos churrascos comunitários para até 300 pessoas, happy hour com pizza e festas juninas. É importante viver em um lugar onde as pessoas estão mais dispostas a se relacionar”, justifica Eduardo.
Crescer em um condomínio cercado de verde influenciou a escolha profissional do engenheiro agrônomo Elber Queiroz, de 26 anos, morador do Ville de Montagne, no Jardim Botânico, há 15.
Existem cinco cachoeiras dentro da área do parcelamento. Quem vive ali tem à disposição trilhas ecológicas, o canto de várias espécies de aves e pode observar primatas como macacos-bugios, nas árvores ao redor. “Aos 11 anos, eu já fazia trilha, andava de bicicleta por todos os lados. Com certeza, essa convivência com a natureza me fez ter outra consciência”, explica Elber.
São 25 hectares de mata de galeria no Ville de Montagne. Uma associação responsável por minimizar os danos ambientais representa os 5 mil moradores do local, que já tiveram de fazer adaptações no parcelamento devido ao fato de estar numa área de meio ambiente protegida.
“Há um tempo, pedi para recolhermos as sementes, quando varríamos o chão. Doamos 10 mil unidades para plantio em outros locais. Vivemos em meio a um banco de sementes muito rico, em contato permanente com a natureza, e é nossa responsabilidade conviver bem com ela”, relata Rodrigo Nunes, morador do condomínio e membro da comissão ambiental da associação de moradores.
Há três anos, o Ville de Montagne promove coleta seletiva. “Foi uma decisão voluntária dos moradores. Começamos com um ou dois adeptos, hoje quase todos seguem essa prática. O mesmo ocorre com as fossas, quase todas são ecológicas”, diz Rodrigo. A associação promove caminhadas na mata e também torneios de esportes radicais, como o skate, para integrar os vizinhos. As ladeiras asfaltadas do condomínio servem como rampa para os skatistas do Ville de Montagne.
Por acreditar em um modelo de vida mais pacato, o representante comercial Kleber Prado, de 43 anos, mudou-se para um condomínio fechado há 14 anos. Em 2000, ele e a mulher viviam na 415 Norte, quando Kleber foi sequestrado embaixo do bloco. Depois de passar horas de terror, decidiu que não viveria mais no Plano Piloto.
Nem a distância, agravada pelo tráfego intenso, atrapalha a qualidade de vida de Kleber Prado. “A distância do centro é um preço fácil de pagar. Ganhamos em qualidade de vida e isso compensa”, revela. O filho caçula, Eduardo, de 9 anos, faz aulas de futebol no condomínio. Isabel, a primogênita, de 11 anos, aproveita as classes de balé. Kleber faz caminhadas em meio ao verde.
O condomínio Bela Vista, no Grande Colorado, em Sobradinho, tem 727 lotes e 2,8 mil moradores. O parcelamento é referência de preservação ambiental para todo o DF, desde que implantou um sistema de coleta seletiva e reaproveitamento do lixo, em 1999. Depois de separados, os dejetos orgânicos são tratados e viram adubo, posteriormente distribuído entre a comunidade que participa do projeto. “Garrafas e caixas de papelão são organizadas ou prensadas e depois vendidas a associações de catadores. A iniciativa não gera receitas, mas é o orgulho dos condôminos”, revela Wilson Parejas, síndico do Bela Vista.
Outro diferencial do Bela Vista são as aulas de ginástica para a terceira idade, que atraem mais de 30 moradores, a maioria aposentados. Elísio Lobo Guimarães, de 69 anos, levanta pesos e faz polichinelos na companhia dos vizinhos e amigos. “Tenho tranquilidade, segurança e qualidade de vida”, justifica.
O advogado Leandro de Araújo da Rosa, de 28 anos, vive com a filha, Natália, de 6 anos, no condomínio Bela Vista desde que a menina nasceu. A sogra, Maria Angélica Bueno Alves, de 62 anos, mora a poucos conjuntos dali. A proximidade é uma tranquilidade para os dois, que convivem e se ajudam, desde que a mãe da menina faleceu, há cinco meses. “Aqui, eu caminho sem medo e tenho minhas amigas e meu grupo de oração. A proximidade entre os vizinhos é excelente”, comenta Angélica.
De olho no sonho de outras famílias brasilienses que desejam compartilhar esse estilo de vida, empreendedores apresentam novas propostas de condomínio. A empresa Alphaville criou um empreendimento na fronteira goiana com o DF. O grande condomínio de luxo fica a 40 minutos do centro de Brasília. Na primeira etapa, todos os 498 lotes foram vendidos. A segunda etapa terá 426 terrenos. A estimativa de investimentos no empreendimento é de R$ 129 milhões.
A gerente de projetos da Alphaville, Maria do Rocio Rosário, explica que o perfil do casal com filhos é o carro-chefe, mas não é a única clientela que a empresa quer alcançar. Haverá centros comerciais para que empresários, por exemplo, possam viver com qualidade perto do escritório. “Queremos estender a mesma qualidade do urbanismo do interior do empreendimento para o exterior, com ciclovias, calçadas e um trânsito com fluidez”, explica. Apesar de o Alphaville ainda não ter casas prontas, o clube já está em funcionamento e, nos fins de semana, as famílias já aproveitam o espaço. De olho nesse ramo, a construtora brasiliense Via Engenharia, em parceria com a Alphaville, vai construir no local duas torres de 20 pavimentos cada uma. Pelo menos 50% do empreendimento já foi vendido.
Na DF-140, entre São Sebastião e Santa Maria, o governo pretende criar uma nova região administrativa, com 900 mil habitantes e prédios de até 15 andares, que enfrenta fortes críticas dos defensores do meio ambiente e urbanistas. Pelo menos 300 empresários já manifestaram interesse em construir no local.
Por que é difícil regularizar?
Há seis anos, Lene Santiago está debruçada sobre o problema. Atual secretária de Regularização de Condomínios do GDF, ela reconhece que, para cada vitória, é preciso enfrentar dezenas de derrotas. “Apesar dos avanços, ainda temos muito para caminhar. Aperfeiçoamos a área técnica e o setor de análise e aprovação porque a demanda é muito grande. O processo de regularização de uma área como Vicente Pires, por exemplo, tem cerca de 50 caixas de documentos”, explica Lene.
Ela cita outra iniciativa que tem ajudado a minimizar as dificuldades: o Fórum de Regularização Fundiária, que reúne representantes do Legislativo, do Judiciário, do GDF e do Ministério Público, além de nomes da sociedade civil. “Com esse espaço de diálogo constante, conseguimos debater soluções para os problemas assim que eles aparecem”, justifica a secretária de Regularização.
Fonte: http://sites.correioweb.com.br/