28/08/24 04:18 - Atualizado há 80 dias
Autorizada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), a cobrança da tarifa mínima de água em condomínios sem medição individualizada tem preocupado síndicos e moradores, que temem um aumento superlativo nas contas a partir de setembro.
Com a revisão do Tema Repetitivo 414, independente do volume de água consumido, um preço fixo determinado pela concessionária será multiplicado pelo número de economias cadastradas e, caso o volume total ultrapasse o limite da tarifa mínima - normalmente 10 ou 15 metros cúbicos por consumidor - será aplicada uma tarifa progressiva.
No cálculo da conta de água, é considerada uma "economia" todo imóvel, sala comercial ou área comum que utilize o mesmo hidrômetro no condomínio, podendo ser aplicados diferentes valores de tarifas, a depender da destinação de cada um.
“Os condôminos estão desesperados. A questão é que toda a advocacia, todo o segmento condominial foi pego de surpresa com essa guinada de jurisprudência”, afirma o especialista em direito condominial André Junqueira. "O que se está dizendo praticamente é: ‘gaste à vontade água, porque nós vamos cobrar’.”
Apesar desse novo entendimento estar em pleno vigor desde 29 de junho de 2024, gestores entrevistados pelo SíndicoNet afirmam que está sendo respeitado um prazo de 60 dias para atualização das faturas, especialmente nos condomínios que possuíam liminares determinando o pagamento do consumo real. Não se sabe, porém, se o aumento virá em setembro ou em outubro.
Para Roberto Bigler, diretor jurídico da ABADI (Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis), ainda que isso se aplique em todo o território nacional, a situação é mais crítica no Rio de Janeiro, onde tiveram início os processos que motivaram o debate.
“Eu entendo que o STJ foi um pouco além das suas atribuições. Não caberia a ele julgar isso, olhando para o problema de um estado em que a diferença de tarifas é tão elevada e distribuindo para todos algo que pode não ser uma realidade local. Ao meu ver, já há uma quebra do pacto federativo aí”, pontua.
Justificada como uma forma de sustentar a operação dos serviços de saneamento básico e garantir a equivalência entre casas e apartamentos, a tarifa mínima de água é uma questão polêmica que afeta principalmente condomínios comerciais, uma vez que o valor do metro cúbico para eles é mais caro, mesmo que o consumo seja ínfimo comparado aos residenciais.
Dessa forma, esta matéria se propõe a explicar como a situação chegou a tal ponto, os impactos dessa metodologia de cobrança em condomínios e de que maneira síndicos devem se preparar para um eventual aumento na conta de água.
Conforme relatos, as concessionárias já estão entrando em contato com os condomínios no Rio de Janeiro para restabelecer contratos e, em alguns casos, fazer propostas de acordo. No entanto, a vantagem oferecida tem prazo de validade.
“O que elas estão propondo de nada adianta: um desconto de 50% durante os seis primeiros meses, depois 75% no próximo semestre e 100% da conta depois de um ano”, conta o síndico profissional Paulo Ribeiro.
“Já participei de duas reuniões que não foram muito proveitosas. É basicamente uma comunicação da concessionária para dar ciência, sobretudo aos condomínios que tinham ações judiciais em curso, de que elas vão passar a cobrar a tarifa mínima de água que agora foi consolidada pelo STJ", complementa Marcelo Borges, administrador de condomínios que integra a diretoria da ABADI.
Como exemplo, André Junqueira menciona um condomínio não residencial de Copacabana onde a água representa 60% das despesas. Após a decisão, esse percentual pode subir para 95%, resultando em um aumento significativo nos gastos ordinários.
“Esse condomínio tinha força de liminar para que não fosse cobrada [a tarifa mínima], por isso a conta tinha sido reduzida em quase 10 vezes e já se sabe qual será o peso. Como a decisão vincula como recurso repetitivo, os tribunais são obrigados a cumprir”, explica.
Segundo os entrevistados, a tarifa mínima de água pode resultar no empobrecimento geral dos condomínios, afetando serviços essenciais e levando à demissão de funcionários e à redução da qualidade dos serviços prestados.
“Temos uma realidade muito peculiar no Rio de Janeiro, em que nós somos obrigados a ter condomínios com portaria 24 horas, alguns até com segurança armada. Esses custos com pessoal representam em torno de 50 a 60%. O consumo de água era uma rubrica em torno de 10% e, agora, está chegando 40% em alguns condomínios. Então, além de assumir um custo pela ineficiência do Estado em matéria de segurança, também somos obrigados a pagar contas de água elevadíssimas por um cálculo que não reflete a proporcionalidade esperada e projetada pelo código de defesa do consumidor”, contesta Bigler.
O aumento das cotas e da inadimplência também terá impacto direto para proprietários de unidades alugadas, que possivelmente terão que absorver esse aumento na cota se quiserem manter a locação do imóvel.
De acordo com Junqueira, ainda é possível vislumbrar uma valorização de condomínios com poucas unidades e áreas comuns, não pela tranquilidade, mas por uma questão de economia.
“A lista de prioridades vai ter que ser revista, então é bem possível que muitos condomínios pensem até mesmo em vender áreas comuns ou exibir publicidade nas empenas laterais para reduzir custos. O que vai valer é a criatividade. Necessidade é a mãe da invenção, como dizia Einstein", conclui o advogado.
No 6º episódio da "Bússola do Síndico", websérie exclusiva do SíndicoNet, reunimos tudo o que é preciso para organizar as finanças do condomínio. Assista abaixo:
Com mais de 600 clientes em sua carteira, Marcelo Borges afirmou ao SíndicoNet que um dos casos mais emblemáticos que tomou ciência até o momento foi o de um edifício localizado no centro do Rio de Janeiro que pagava R$ 15 mil na conta de água graças a uma liminar. Após a autorização da cobrança da tarifa mínima de água, a conta vai para R$ 185 mil, valor aproximadamente 12 vezes maior.
A preocupação com o aumento das cotas condominiais é ainda maior justamente nessa região, que tem sofrido enorme desvalorização desde a pandemia.
“Com a questão do home office, houve um êxodo nos condomínios comerciais do centro do Rio. Muitas salas já se encontram vazias e, agora, terão sua venda e locação prejudicadas. Infelizmente, essa vitória das concessionárias é uma derrota para a população”, lamenta André Junqueira.
“Neles, o valor do metro cúbico de água é mais caro ainda, cada sala vai pagar R$ 450. É muito dinheiro, independente de ser na Barra da Tijuca, na baixada fluminense ou na Zona Norte. Eu tenho 58 condomínios e posso garantir que pelo menos metade deles vai ficar inadimplente”, comenta Paulo Ribeiro.
O síndico abriu com exclusividade para o portal SíndicoNet duas contas que demonstram a diferença entre o consumo lido e o faturado já considerando o consumo da tarifa mínima de água multiplicado pelo número de economias. Ambos são abastecidos pela concessionária Iguá (veja o posicionamento abaixo) e tinham liminares que perderam a validade após a decisão do STJ.
Em um edifício comercial localizado no Recreio dos Bandeirantes, o volume faturado é quase quatro vezes maior que o efetivamente consumido. Veja:
"Já em um dos residenciais, que fica na Barra da Tijuca e tem 35 unidades, a conta vai subir R$ 2.500. Não é muita coisa, nós conseguimos absorver, agora num prédio simples, assumir esse valor é impossível”, alerta Paulo.
De acordo com os especialistas, a cobrança de água nesses moldes impacta negativamente a população, especialmente em habitações de interesse social, onde o aumento das taxas pode levar à inadimplência e à perda de imóveis.
“A sociedade e o Estado têm que ter uma visão mais carinhosa com os condomínios populares. São pessoas que estão adquirindo um imóvel pela primeira vez e não têm o costume de pagar condomínio. Ter esse peso na economia doméstica ampliado é pedir que elas comecem a perder seus imóveis por inadimplência. Quando eles dão esse 'presente' para as concessionárias de água, estão afetando toda a nossa população e a parte pobre sofre mais sempre”, afirma André Junqueira.
Em nota enviada ao SíndicoNet, a concessionária reforça que a cobrança da tarifa mínima de água é legítima e está em contato com os condomínios mencionados acima. Leia na íntegra:
"A Iguá esclarece que a cobrança das tarifas de água e esgoto nos condomínios citados está em total conformidade com o Contrato de Concessão nº 34/2021 e com o Regulamento de Serviços de Água e Esgotamento Sanitário (Decreto Estadual nº 48.225/2022), aprovado pela AGENERSA, agência reguladora do estado do Rio de Janeiro. O formato de cobrança utilizado, incluindo a tarifa mínima com estrutura progressiva, está respaldado pelo Marco Legal do Saneamento, sendo reconhecido como legítimo pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em decisão recente, que reafirmou a legalidade desse procedimento.
É importante ressaltar que a cobrança por média de consumo é aplicada somente em situações em que a leitura do hidrômetro não é possível, seja por dificuldade de acesso ou problemas no equipamento. Nestes casos, a Iguá realiza a cobrança com base na média dos últimos 12 meses, conforme estabelecido no Regulamento. A concessionária já está em contato com os clientes citados para esclarecer dúvidas e discutir formas de facilitar os pagamentos, reforçando seu compromisso com a transparência e o atendimento de qualidade.
A Iguá permanece à disposição dos clientes por meio da Central de Atendimento, no número 0800 400 0509 (telefone e WhatsApp). A companhia se coloca à disposição para qualquer esclarecimento adicional e reitera que continua trabalhando para oferecer um serviço eficiente e seguro para os clientes."
Em Resende, interior do Rio de Janeiro, a cobrança da tarifa mínima de água e esgoto foi implantada há mais de 15 anos por meio do decreto 2405, logo após a assinatura do contrato de concessão celebrado entre o município e a concessionária Águas das Agulhas Negras, também integrante do Grupo Águas do Brasil.
Atuante na região, Fúlvio Stagi conta que sua carteira é composta por condomínios que possuem, em média, 32 unidades autônomas. Com o consumo mínimo de 10 metros cúbicos por unidade tarifado em R$ 62, a conta gira em torno de R$ 1.984, se não forem consideradas as áreas comuns.
“O que sentimos nas assembleias de implantação é que muita gente acha que só vai pagar quando for morar no condomínio, mas a cobrança ocorre já a partir da entrega, ele estando ou não ocupado. Os condômimos não acham justo, então temos todo um trabalho de esclarecimento para demonstrar que isso ocorre devido a uma lei municipal”, detalha o síndico profissional.
Fúlvio ainda relata que alguns condomínios já cogitaram adotar a cobrança individualizada de água, mas isso traria um prejuízo ainda maior:
“A gente vê que nem tem vantagem, porque eles não atingem o mínimo. Se o condomínio tem 32 unidades, você tem 320 metros cúbicos para gastar e a leitura dá abaixo disso. Então eu vou individualizar para quê, se a conta vai vir acima de R$ 2 mil?”
Em condomínios maiores, no entanto, a conta de água se torna um dos principais desafios orçamentários, o que torna a individualização de hidrômetros uma boa opção. “Eu administro um com 420 unidades onde a conta chega a R$ 32 mil”, exemplifica.
Outro problema pontuado ao SíndicoNet foi o desperdício de água. Segundo Fúlvio, num outro condomínio com 56 unidades, a conta de água de R$ 3.800 já era incluída na previsão orçamentária para dar visibilidade aos moradores que a taxa condominial seria de R$ 580. No entanto, a cobrança foi praticamente duplicada.
“Fizemos toda a vistoria no hidrômetro de entrada, pedimos à concessionária a verificação de tronco, controlamos o nível dos reservatórios inferior e superior para ver se tinha vazamento, mas no mês seguinte foi praticamente a mesma coisa. A questão era o excesso de consumo mesmo”, lembra.
“Como não está individualizado, não conseguimos identificar se uma unidade específica é responsável e, no fim, todo mundo paga a conta”, conclui Fúlvio.
A solução encontrada pelo síndico, apesar de quase ter custado seu mandato, foi incluir no boleto do condomínio uma média de quanto cada morador estaria gastando de água.
Segundo Bigler, as concessionárias estão tendo o cuidado de contatar o condomínio em casos de disparidades elevadas nas contas para evitar surpresas, e é importante estudar a nova fatura para verificar a correção da tarifação.
Caso isso não aconteça, o advogado André Junqueira recomenda que o condomínio entre em contato com a concessionária e considere a ajuda de um advogado e de um perito para analisar a situação e discutir possíveis contratos que o beneficiem.
“Um ponto que os condomínios têm que ponderar se conseguem rever é a questão da quantidade de economias cadastradas. Trata-se de uma análise técnica, então você tem que estar com um perito para ver se os critérios estão sendo obedecidos e pedir para rever. No mais, é avaliar se há vazamentos ou problemas na medição. Não vai ter receita de bolo”, detalha.
Outra orientação importante para esse momento de incertezas e ânimos exaltados é reforçar a comunicação com os moradores, seja por meio de comunicados nos elevadores ou do aplicativo do condomínio.
O próprio SíndicoNet elaborou um modelo de comunicado que pode ser adaptado para informá-los sobre as mudanças na conta de água, prevenindo sustos com a nova fatura:
“Eu disparei comunicados, fiz um bate-papo informal com os condôminos e estou fazendo assembleias todos os dias para demonstrar a eles que o problema não é do nosso condomínio, nem do Rio de Janeiro. O problema é de um acórdão do STJ que deu ganho de causa para as concessionárias de água e não há mais a opção de entrar na Justiça para obter novas liminares”, conta o síndico profissional Paulo Ribeiro.
Questionado sobre a possibilidade de uma nova decisão que venha reverter o cenário atual, Junqueira foi enfático: “Infelizmente, não há previsão. Os recursos que estão sendo apresentados vão ser discutidos, mas a chance de êxito é mínima. A minha previsão é de que não haverá alteração disso, a não ser que haja uma movimentação política, porque a jurídica foi esgotada.”
Embora embargos de declaração tenham sido solicitados para esclarecimento da decisão, o diretor jurídico da ABADI, Roberto Bigler, concorda com o advogado André Junqueira:
"É possível cogitar a possibilidade de um recurso extraordinário para o STF, mas é pouco provável que o tema chegue nessa instância. Para tanto, seria necessário o descumprimento de uma norma constitucional, mas a discussão que a gente tem a princípio é sobre leis federais."
Como o objeto de discussão era a tarifação de água em um condomínio residencial, a decisão não teve a oportunidade de analisar um caso em um condomínio comercial ou misto.
Por não haver essa distinção, ainda há esperança de que o STJ se sensibilize com os condomínios não residenciais. Para isso, os advogados desses empreendimentos teriam que ajuizar novas ações.
Diante desse cenário, Bigler faz uma observação:
“A ABADI tem um núcleo chamado CAJ (Comissão de Assuntos Jurídicos), que se reúne periodicamente com os advogados do corpo jurídico da maioria das administradores do estado do Rio de Janeiro e discutem temas que são relevantes para a instituição e para o mercado como um todo. Então, a gente oferece uma tese e os condomínios que entenderem que aquilo faz sentido podem utilizar desse mecanismo para ingressar com uma ação.”
No primeiro momento, um abaixo-assinado chegou a ser criado para dar visibilidade ao assunto e reuniu mais de 40 mil assinaturas, o que para Junqueira "é pouco no universo que temos, se contarmos apenas Rio de Janeiro. Isso mostra que a população não está ciente do que está sendo discutido e, quando chegar a conta, as pessoas verão o nível do problema”.
“Por mais que a ABADI seja uma associação ligada ao âmbito empresarial, nós já ultrapassamos essa barreira há muito tempo, hoje estamos lutando pelo interesse dos condomínios e vamos ter que pensar em novas estratégias. Todo mundo foi pego de surpresa e o que estamos tentando fazer com as administradoras é organizar o caixa dos condomínios para saldarem suas obrigações”, reforça Bigler.
Dessa forma, a orientação dada pela entidade aos síndicos é contar com administradoras associadas, que não têm papel jurídico, mas são treinadas para fornecer informações claras e atualizadas sobre a situação. A lista pode ser conferida em: abadi.com.br/associe-se/associados-abadi
Procurados pelo SíndicoNet, o Secovi Rio e o Grupo Águas do Brasil não se manifestaram até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto.
Fontes consultadas: André Junqueira (advogado especializado em condomínios); Fúlvio Stagi (síndico profissional); Marcelo Borges (administrador de condomínios e membro da diretoria da ABADI no biênio 2024-2026); Paulo Ribeiro (síndico profissional); Roberto Bigler (diretor jurídico da ABADI no biênio 2024-2026).