29/08/24 07:50 - Atualizado há 80 dias
A cidade passa por ciclos. Expande suas fronteiras ao mesmo tempo que desocupa áreas centrais. O que antes era rota do café, vira avenida congestionada, repleta de serviços modernos. Mas o tempo passa, novas formas de comércio surgem e vem uma pandemia.
Ninguém sai mais às ruas para comprar e tudo se resolve em um clique. Zonas de comércio são então transformadas, e cedem seu espaço a bares e pequenos restaurantes. Assim, num ciclo de pouco mais de um século, a música passa a habitar as ruas onde antes apenas a Maria Fumaça apitava.
Essa dinâmica, recorrente em todas as metrópoles mundo afora, normalmente segue o fluxo do desenvolvimento econômico e molda os novos usos do espaço urbano.
Ocorre que, para a cidade se reinventar, normalmente há um lapso temporal, onde os espaços perdem o que lhes dá vida e propósito: as pessoas. Assim, áreas valorizadas e adensadas, subitamente, são desocupadas e passam por um processo de deterioração.
Imóveis vazios passam a ser alvo de depredação. Há casos, se especula, em que tal degeneração do tecido urbano ocorra de maneira proposital, visando baixar o valor imobiliário para que determinado grupo de empreendedores arremate a área toda. Feito isso, um novo ciclo se inicia, e após altos investimentos no local, temos uma área requalificada e supervalorizada, na franca expansão de um estilo cult de se viver.
Assim, o descolado e o sofisticado de mesclam e pessoas com alto poder econômico passam a habitar espaços que antes pertenciam a gente sem teto e sem inserção social. Tais espaços, antes pertencentes à uma população invisível e nômade, são assim legitimamente reocupados.
Contudo, é importante prestar bastante atenção no curso de mudanças dessa natureza em nossas cidades, para não se incorrer na indesejável prática da gentrificação.
Deixando mais claro, em tal processo, a população local, e de baixa renda, é literalmente varrida da região, cedendo seu espaço a uma nova população de poder socioeconômico muito mais elevado. Os antigos habitantes acabam indo para a periferia, sem infraestrutura e sem oportunidades de trabalho, ou, em casos mais dramáticos, para debaixo de pontes mais distantes.
Puerto Madeiro e Canary Wharf, em Buenos Aires e Londres, respectivamente, são exemplos clássicos desse tipo de transformação, que gerou espaços magnificamente requalificados, mas totalmente excludentes.
Bem, se pensarmos que aqui na capital paulista, derrubamos sobradinhos às centenas para darmos espaço para grandes conglomerados de edifícios, onde dificilmente os moradores antigos se qualificariam para ocupar, não estaríamos fazendo o mesmo?
Importante pensar, em grandes projetos de reestruturação urbana, em se criar tipologias habitacionais diversas, que possibilitem sua ocupação por várias camadas da sociedade e não apenas por um determinado grupo.
Pessoas são diferentes e até biologicamente falando, a diversidade favorece a genética e evita doenças congênitas.
No aspecto social, o convívio com outras culturas e a exposição a novos pontos de vista, expande nossa consciência e nos proporciona necessários momentos de reflexão sobre nossas escolhas de vida.
(*) Lígia Ramos é Arquiteta Urbanista e Bióloga pós-graduada, síndica profissional da D’Accord, com atuação há mais de 20 anos no mercado. Gosta de cuidar de aspectos práticos do condomínio, incluindo gestão de áreas verdes. Faz gestão de pessoas, traça planos estratégicos e cria canais de comunicação com seus condôminos.