06/11/24 04:50 - Atualizado há 15 dias
Para muitos brasileiros, a "fezinha" semanal é um compromisso sagrado, tanto que dicionários como Priberam e Michaelis já exibem definições para o termo popular usado para falar das apostas. Mas, nos últimos anos, o fenômeno das bets levou esse hábito a outros patamares, despertando preocupação também no setor condominial.
Se antes era necessário ir até uma casa lotérica, agora há inúmeras opções de plataformas acessíveis pelo celular. Com tamanha praticidade e a promessa de fazer fortunas com apenas alguns cliques, é fácil perder o controle.
Segundo um estudo divulgado pela revista científica The Lancet (outubro/2024), estima-se que o vício em apostas afeta pelo menos 80 milhões de pessoas no mundo.
Fazendo um recorte no ambiente virtual, os índices de dependência entre adultos chegam a 8,9% quando se tratam de apostas esportivas, como as feitas nas bets, e 15,8% para produtos de cassino ou caça-níqueis online, como o "Jogo do Tigrinho".
Dentro de condomínios, esse cenário começa a ser refletido na queda de desempenho de funcionários, que estão contraindo dívidas e, nos casos mais graves, investindo seus salários indiscriminadamente nas bets durante o expediente.
Nesta matéria, você encontra relatos de síndicos sobre os problemas enfrentados e orientações de especialistas para lidar com a questão da melhor forma. Boa leitura!
Quem é fã de algum esporte certamente já se deparou, durante a transmissão das partidas do seu time preferido, com propagandas de bets - do inglês "to bet", que significa apostar. Bets é como ficaram conhecidas as apostas esportivas no formato online.
Desde a legalização em 2018, as casas de apostas digitais têm conquistado cada vez mais interesse, movimentando centenas de bilhões de reais ao ano.
Já o Instituto de Pesquisa DataSenado (agosto/2024) traçou um perfil dos apostadores brasileiros: em sua maioria, são homens jovens com ensino médio completo e que recebem até dois salários-mínimos, ou seja, R$ 2.824.
Dos 12% da população que fizeram apostas esportivas nos 30 dias anteriores à entrevista, por meio de aplicativos de bet ou sites na internet, 42% afirmou que possui dívidas em atraso há mais de um mês.
Impulsionada pela divulgação de influenciadores digitais, a promessa de multiplicar dinheiro sem esforço e de forma ágil também atraiu usuários para os cassinos online, até o momento ilegais no Brasil.
Apesar do debate ter se intensificado recentemente, historiadores apontam que os jogos de azar fazem parte da rotina dos brasileiros desde o período colonial, sendo promovidos de forma irregular por muito tempo.
Vale ressaltar que a tipificação penal, hoje, é diferente para loterias e apostas esportivas, considerando que não se depende única e exclusivamente da sorte, mas também da habilidade analítica.
No campo legislativo, as tentativas de regulamentação não foram poucas, conforme é possível verificar no histórico abaixo:
A partir de então, foi criada a Secretaria de Prêmios e Apostas dentro do Ministério da Fazenda, responsável pela publicação de inúmeras portarias que estabelecem diretrizes de fiscalização e propaganda das chamadas "bets".
Segundo a advogada Carmem Lilian Calvo Bosquê, o mercado regulado de apostas no Brasil começará a valer a partir de 1º de janeiro de 2025. No momento, mais de 200 bets (confira a lista aqui) poderão continuar a oferecer os serviços até que o órgão informe quais terão a "autorização definitiva".
Para as empresas não autorizadas, a situação muda. Elas não poderão oferecer apostas e deveriam manter seus sites abertos até o dia 10 de novembro de 2024 para que os clientes possam retirar seus depósitos, sendo que os domínios de internet serão derrubados pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações).
Na primeira quinzena de outubro, mais de dois mil sites irregulares receberam ordens para serem retirados do ar.
Além disso, o secretário de Prêmios e Apostas, Régis Dudena, anunciou que a regulamentação exigirá das operadoras o registro do CPF dos jogadores, com o objetivo de acompanhar o histórico dos apostadores e assegurar sua saúde mental e financeira. Em 31 de outubro, outra lista com 1.443 bets a serem bloqueadas foi enviada à Anatel.
Doença reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a ludopatia nada mais é que a compulsão por jogos de azar, abarcando as bets e cassinos online. O tratamento envolve terapias individuais ou em grupo.
Em artigo publicado pelo Hospital Santa Mônica, referência em tratamentos psiquiátricos no estado de São Paulo, o psicólogo Antonio Chaves Filho explicou como funciona o vício em apostas. Segundo ele, o jogo pode ativar o sistema de recompensa do cérebro de maneira semelhante ao álcool e às drogas, levando à dependência:
"Pessoas com esse transtorno frequentemente perseguem apostas, acumulam perdas, esgotam suas economias e contraem dívidas, sempre impulsionados pela esperança de que a 'boa oportunidade' está por vir, o que na verdade é uma significativa baixa da dopamina em seu cérebro, após uma importante estimulação que acontece quando a aposta é feita. Muitas vezes, escondem seu comportamento, mentem para entes queridos e, em casos extremos, recorrem ao roubo ou fraude para sustentar a dependência."
No ambiente de trabalho, a identificação da ludopatia tende a ser desafiadora, afinal há um limite a ser respeitado para não invadir a privacidade dos colaboradores.
Apesar de não existirem dados concretos sobre o efeito das bets em condomínios, casos de funcionários tendo seu desempenho afetado começam a se multiplicar, como relata o síndico profissional Wolfram Werther, que afirma estar enfrentando a situação em quatro condomínios de sua carteira.
Dois empregados já teriam confirmado que estavam fazendo apostas durante o expediente, após terem sido advertidos pelo uso constante do celular pessoal.
"Isso já está muito mais alastrado do que temos ideia, um colega vai comentando com outro, e não adianta proibir ou pedir que mantenham o aparelho desligado. Em algum momento, eles vão ao banheiro ou fazem sua pausa para o almoço, aí já não temos como controlar", conta Wolfram.
De acordo com ele, para quitar as dívidas decorrentes das apostas online, além da antecipação do 13º salário e das férias, os funcionários estão recorrendo a instituições financeiras que oferecem soluções de crédito a "juros altíssimos". Os valores chegariam a R$ 5 mil.
Em entrevista à reportagem, uma assinante do SíndicoNet Clube, que preferiu não se identificar, contou detalhes sobre o problema enfrentado recentemente com um funcionário terceirizado. Atuante na Vila Prudente, Zona Leste da capital paulista, a síndica classificou o caso como um "vício terrível".
"Chegou até mim uma reclamação de um membro do conselho, informando que o porteiro andava muito no celular. Por meio das imagens da câmera de segurança e de outros funcionários, fiquei sabendo que se tratava de um joguinho de aposta", ela relembra.
Depois de dois meses tentando contornar a situação com conversas, envolvendo também o zelador do condomínio e a empresa de terceirização, o funcionário reduziu o tempo de tela, mas o mau hábito não cessou. Dessa forma, ele foi substituído por outro colaborador e realocado em outro residencial.
O vício em bets ainda é um tema incipiente no âmbito dos direitos trabalhistas, logo não há jurisprudências nas quais o síndico possa se basear para tomar decisões seguras. No entanto, há algumas correlações que podem ser feitas, evitando problemas jurídicos no condomínio.
Para entender como é possível agir dentro da legalidade nesses casos, o SíndicoNet consultou a advogada e síndica profissional Anamaria Mallet. Confira a seguir respostas para algumas dúvidas que podem surgir com relação ao tema:
Segundo Anamaria, a questão das bets em condomínios muito se assemelha à das televisões em guaritas, encontradas com frequência no Rio de Janeiro.
"O porteiro tem que estar atento a todas as funções, especialmente nos horários de pico de saída e de chegada dos moradores. Quando ele está distraído, ao tocar o interfone, ele leva aquele susto e já abre o portão no automático. Isso é uma coisa muito perigosa", compara a advogada.
Se o uso de celular estiver afetando o trabalho do funcionário, resultando em demora ou descuido com as atividades atribuídas, vale sempre uma conversa para reforçar a necessidade de total atenção. Ocasionalmente, treinamentos podem ser promovidos para atualizar os procedimentos de segurança.
Quando o aparelho é indispensável para o trabalho do colaborador, a recomendação é fornecer um celular corporativo, se possível. Em situações extremas, o síndico também pode proibir o uso durante o expediente.
Tudo vai depender da relação entre síndico e funcionário do condomínio. Quando houver certa liberdade entre as partes, orientá-lo de forma amigável sobre os riscos das apostas e formas de tratamento do transtorno pode ser suficiente.
Sim, porém o síndico deve evitar justificativas como "você vai apostar tudo". O mais recomendável é informar que um adiantamento comprometeria outras obrigações financeiras do condomínio.
Vale ressaltar que, para funcionários terceirizados, as tratativas devem ser feitas diretamente com a empresa contratante.
A demissão por justa causa deve estar atrelada a incidentes graves e comprovados, caso contrário, é gerada indenização por dano moral. O cenário mais preocupante, entretanto, é uma eventual reintegração do funcionário desligado ao condomínio.
"Tem que ter, realmente, um apoio jurídico. A Justiça do Trabalho agora vai começar a enfrentar essas situações, então ainda vamos saber se o entendimento com relação a esse vício será semelhante ao do alcoolismo, chegando a ponto de ser considerado de forma previdenciária. Então, eu não recomendo ser uma justa causa no momento", reforça Anamaria.
No vídeo a seguir, a advogada Marilen Amorim compila algumas dicas para que você possa se manter em dia com os direitos trabalhistas. Assista:
Ainda há muito o que debater sobre as bets no campo legislativo e judiciário, mas após esse "boom" inicial, a tendência é que elas percam popularidade.
Um estudo da LCA Consultoria Econômica, encomendado pelo Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR), aponta uma acomodação no interesse dos consumidores desde a legalização em 2018. Confira, nos gráficos abaixo, como as pesquisas caíram no Google:
Do outro lado, as bets se reinventam e apostam em campanhas publicitárias com personalidades conhecidas do público para transmitir confiabilidade e captar novos usuários.
Em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 2564/24 já prevê a derrubada de perfis que atuem na promoção de plataformas não autorizadas nas redes sociais e determina a criação de mecanismos para monitorar operações ilegais na internet.
Marcelo Pirani, diretor da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH), reforça que a preocupação com o vício em apostas continua sendo válida, mas este é um momento de trabalhar com a precaução:
"Quando a saúde financeira do colaborador é afetada, a base da pirâmide também é. O pessoal começa a faltar no trabalho, ter problemas em casa, pegar empréstimos... então a gente gosta sempre de falar sobre o papel educacional dos líderes e, obviamente, do RH em mostrar as implicações que as bets podem trazer", defende.
Segundo Marcelo, é igualmente importante que o síndico esteja atento aos sinais de que algo está errado com os funcionários do condomínio. Com uma gestão humanizada, há mais abertura para tratar de assuntos delicados e oferecer o apoio necessário, dentro das limitações do empregador.
"O que cabe à gente, enquanto síndico, é partir para o lado didático. O caminho não é condenar a pessoa que se viciou, até porque ela nunca vai admitir isso, às vezes até acha que a aposta é um investimento", alerta Wolfram.
Justamente para combater essa ideia, sem expor o funcionário adicto, Anamaria sugere que palestras sobre gestão de finanças pessoais sejam promovidas para a equipe entender o real impacto dos jogos de azar.
Vale lembrar que o vício em apostas também acomete moradores, que eventualmente indicam as bets aos vizinhos e empregados do condomínio, alastrando o problema e prejudicando a convivência nesses núcleos. Logo, a conscientização sobre ludopatia deve envolver todas as partes.
Agora que você já sabe como lidar com funcionários viciados em bets, que tal conferir nosso conteúdo sobre direitos trabalhistas em condomínios? Respondemos aqui as 40 dúvidas mais comuns sobre o tema!
Fontes consultadas: Anamaria Mallet (advogada e síndica profissional); Carmem Lilian Calvo Bosquê (advogada); Hospital Santa Mônica; Instituto Brasileiro de Jogo Responsável; Instituto de Pesquisa DataSenado; Marcelo Pirani (diretor da ABRH Brasil); Ministério da Fazenda; Wolfram Werther (síndico profissional).