Condomínios x Airbnb: o que muda com a decisão do STJ
Condomínio no RS pode proibir morador de locar apartamento através da plataforma. Primeira vez que a Corte Superior discute o tema
Por André Luiz Junqueira*
Ao julgar o Recurso Especial nº 1.819.075/RS, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ratificou a possibilidade de um condomínio proibir locações de curta temporada e fracionamento de imóvel, utilizando ou não plataformas eletrônicas.
O precedente é de extrema importância, pois, apesar de não ser vinculante (não é obrigatório que todos os juízes do país sigam) é a primeira vez que a Corte Superior se manifesta sobre o mérito do assunto que já foi muito discutido nos tribunais locais e que é (e continuará sendo) alvo de controvérsias.
Sendo assim, importante revisitarmos a tese que deu origem à tamanha discussão para, ao final, abordar as três correntes de pensamento existentes e concluindo por uma delas: de que determinadas formas de cessão do imóvel são proibidas por não serem residenciais.
Advento dos aplicativos de hospedagem
Não é novidade a tentativa de condôminos e ocupantes tentarem explorar ao máximo suas unidades imobiliárias (casas ou apartamentos).
Ao longo de décadas, condôminos tentam utilizar seus imóveis como repúblicas, hospedarias e similares, desafiando o limite de seus direitos enquanto titulares de fração ideal do condomínio.
A partir do ano de 2013, a hospedagem domiciliar se intensificou com a realização da Copa das Confederações da FIFA, da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e a visita do Papa.
Considerando as Olimpíadas de 2016, a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro foi uma das entidades que mais fomentou essa prática para se atender uma suposta carência de dormitórios, tendo em vista que os meios usuais, como hotéis e pousadas, não teriam oferta suficiente.
Ao mesmo tempo, surgiu o fenômeno dos aplicativos de hospedagem que permanecem no limbo entre estabelecimento de hospedagem e atividade de intermediação imobiliária, mas que aparentemente defendem que estariam fora de qualquer regulação das áreas mencionadas.
De qualquer forma, o ponto pacífico é que tais aplicativos transformaram a forma como negocia tais locações, pois são acessíveis, eficientes e, aparentemente, seguros. Consequentemente, gerou um aumento relevante na quantidade desse tipo de negócio que, embora interessante para o turismo e o proprietário da unidade, causam grandes transtornos aos condomínios residenciais.
Nas próximas linhas, buscar-se-á esclarecer como essas figuras são classificadas pelo Direito e, principalmente, quais as suas consequências jurídicas quando inseridas em um condomínio edilício, pois nem toda hospedagem domiciliar pode ser praticada em prédios residenciais.
Apesar de comum, a hospedagem domiciliar desafia os conceitos já estabelecidos sobre a locação por temporada e, principalmente, os limites permitidos em uma edificação com destinação exclusivamente residencial.
Sistema brasileiro de classificação de meios de hospedagem
Antes de mais nada, deve-se verificar qual é a definição legal de um meio de hospedagem. Essa definição é trazida pelo art. 23, caput, da Lei Federal nº 11.771 de 2008, que dispõe sobre a Política Nacional de Turismo:
“Consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de frequência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária.”
Aprovado pela Portaria nº 100/2011 do Ministério do Turismo, o Sistema Brasileiro de Classificação de Meios de Hospedagem (SBClass) os organiza da seguinte maneira: “Meio de Hospedagem:
I - HOTEL: estabelecimento com serviço de recepção, alojamento temporário, com ou sem alimentação, ofertados em unidades individuais e de uso exclusivo dos hóspedes, mediante cobrança de diária;
II - RESORT: hotel com infraestrutura de lazer e entretenimento que disponha de serviços de estética, atividades físicas, recreação e convívio com a natureza no próprio empreendimento;
III - HOTEL FAZENDA: localizado em ambiente rural, dotado de exploração agropecuária, que ofereça entretenimento e vivência do campo;
IV - CAMA E CAFÉ: hospedagem em residência com no máximo três unidades habitacionais para uso turístico, com serviços de café da manhã e limpeza, na qual o possuidor do estabelecimento resida;
V - HOTEL HISTÓRICO: instalado em edificação preservada em sua forma original ou restaurada, ou ainda que tenha sido palco de fatos histórico-culturais de importância reconhecida; (...)
VI - POUSADA: empreendimento de característica horizontal, composto de no máximo 30 unidades habitacionais e 90 leitos, com serviços de recepção, alimentação e alojamento temporário, podendo ser em um prédio único com até três pavimentos, ou contar com chalés ou bangalôs; e
VII - FLAT/APART-HOTEL: constituído por unidades habitacionais que disponham de dormitório, banheiro, sala e cozinha equipada, em edifício com administração e comercialização integradas, que possua serviço de recepção, limpeza e arrumação.”
Do ponto de vista da Administração Pública, a divisão acima possui relevância no sentido de se exigir diferentes condições de o funcionamento de cada empreendimento, atribuindo de 1 a 5 estrelas, gerindo, assim, a qualidade do setor hoteleiro como um todo. Porém, o sistema ainda não prevê albergues e outros similares, o que não significa dizer que seriam proibidos.
Assim como o negócio de cama & café, que foi recentemente integrado ao SBClass (cuja inscrição no CADASTUR é facultativa), pode-se perceber que os albergues e similares têm conquistado muito espaço no setor, seus custos baixos (tanto para o empreendedor quanto para o hóspede) têm lhes dado vantagens em relação aos meios de hospedagem tradicionais.
Na cidade do Rio de Janeiro, o Decreto Municipal 29.881, que consolida as Posturas da Cidade do Rio de Janeiro, trata do licenciamento e funcionamento de atividades de estabelecimentos que prestam serviços de hospedagem nos artigos 55 a 59 do Regulamento nº 1 do Livro I.
Essa norma traz em seu Anexo IX definições mais abrangentes dos meios de hospedagem e expressamente exclui da classificação de serviços de hospedagem as residências familiares nas quais se aluguem até três quartos, com ou sem fornecimento de refeições, mediante contrato de aluguel, tácito ou expresso, por período indeterminado, cuja remuneração é mensal.
Classificação de acordo com o estabelecimento do meio de hospedagem
Visando melhor se situar dentro da análise proposta, que é avaliar eventual incompatibilidade da atividade com o condomínio, é possível propor uma nova classificação dos meios de hospedagem.
Levando em conta a forma de instalação física do negócio, da seguinte forma: (A) hospedagem comercial ou profissional, (B) hospedagem domiciliar onerosa e (C) hospedagem domiciliar gratuita.
A diferença está no fato de que os dois últimos estão localizados em imóveis residenciais, enquanto o primeiro está em um comercial/não residencial. E são esses exatamente os dois tipos de hospedagem domiciliar que podem gerar conflitos com o condomínio.
Se enquadra dentro do tipo hospedagem profissional todo negócio afim que se situa em um imóvel exclusivamente destinado para atividade não residencial, mesmo dentro de um condomínio misto.
Exemplos: hotéis, pousadas, apartamento com destinação de hospedagem dentro de um apart-hotel, albergue ou república que funcione em uma casa em logradouro público que permita atividades não residenciais.
Nesse tipo de meio de hospedagem, deve-se atender as exigências do Poder Público para seu funcionamento (inscrição no CADASTUR - Sistema de Cadastro dos Prestadores de Serviços Turísticos, por exemplo).
A hospedagem domiciliar onerosa é aquela exercida dentro de um imóvel residencial, seja dentro de uma casa ou apartamento, e tem o objetivo de se obter ganhos financeiros com essa atividade.
Esses são os considerados meios alternativos de hospedagens e são exemplificados por: albergues (ou hostels), repúblicas (ou hospedarias) e os cama & café (bed & breakfast). Apesar de ter menos exigências, essas atividades também devem seguir determinadas regras para funcionamento.
Por sua vez, a hospedagem domiciliar gratuita é o simples ato de se receber em sua casa ou apartamento um hóspede, podendo ser amigo, parente ou outro.
Nessa modalidade, não existe nenhuma implicação do ponto de vista empresarial, sendo, em princípio, um simples exercício regular de direito. Mais adiante, será traçado um comparativo com o contrato de comodato previsto no Código Civil (art. 579 ao art. 585).
Locação de imóvel urbano residencial e por temporada
À luz do art. 1º, alínea “a”, nº 4, a Lei do Inquilinato (Lei Federal nº 8.245 de 1991) expressamente não se aplica às locações “em apart-hotéis, hotéis-residência ou equiparados, assim considerados aqueles que prestam serviços regulares a seus usuários e como tais sejam autorizados a funcionar.”
A definição legal supracitada está em plena harmonia com a distinção feita por Sylvio Capanema de Souza com as locações por temporada (submetidas à Lei do Inquilinato), transcrita a seguir:
“Cabe ressaltar, finalmente, que a locação por temporada não se confunde com aquelas celebradas em apart-hotéis, hotéis-residência ou assemelhados, cujo regime jurídico se subsume ao sistema do Código Civil, na forma do que dispõe o parágrafo único, alínea a, nº 4, ficando estas últimas fora do pálio protetor da Lei do Inquilinato. A diferença é que nas locações de imóveis por temporada, ainda que mobiliados, o locador não fornece serviços regulares ao locatário, tal como se exige nos apart-hotéis. Nestes, há um misto de contrato de locação de coisa e de locação de serviços, caracterizando, muito mais, o contrato atípico de hospedagem. ”
Como se pode ver, cama & café, albergue ou similar não se enquadram no regime jurídico da Lei do Inquilinato. Tampouco se enquadram no regime de locação de coisas previsto no Código Civil (art. 565 ao art. 578).
Quando a Lei do Inquilinato disciplinou a locação por temporada, foi no intuito de criar garantias para o locador nesse tipo de locação de risco, mas nunca de forma a impedir a aplicação do preceito legal aplicável aos condomínios, que é o de preservação da destinação original das unidades imobiliárias.
A Lei do Inquilinato nada fala:
- sobre o limite mínimo de tempo da locação
- sobre a possibilidade de locação de partes do imóvel (incluindo se haveria direito de preferência para quem aluga parte do imóvel)
- sobre o número máximo de pessoas no imóvel locado.
E esses três aspectos são fundamentais para que se avalie se tal locação mais se assemelha a um meio de hospedagem do que uma residência.
Da proibição de alteração da destinação da unidade x direito de uso de fruição do condômino
O ponto central da discussão é se o direito do condômino de usar e fruir o seu imóvel (direito previsto no art. 1.335, I, do Código Civil) alugando por curto espaço de tempo ou parte do imóvel etc. estaria em harmonia com o dever de respeitar a destinação do condomínio e da unidade (art. 1.332, III, e art. 1.336, IV, 1ª parte, ambos do Código Civil).
Daí surgem três interpretações possíveis e de igual relevância para o estudo da matéria. Cada uma dessas três linhas de pensamento tem também uma variante, conforme exposto a seguir:
- A de que não se pode limitar o direito previsto no art. 1.335, I, do Código Civil, salvo se houver prova de prejuízo ao sossego, saúde e segurança. Não se interpretando que locações por curtos períodos sejam não residenciais. Mas, ainda dentro dessa linha de pensamento, existem os que defendem que a locação fracionada do imóvel (quartos, camas etc.) não seria permitido;
- A de que a convenção pode regulamentar as locações por temporada, sejam curtas ou não. Nesse caso, tais atividades estariam permitidas até que a assembleia alterasse sua convenção por 2/3 de todo o condomínio e passa-se a proibir ou limitar. Dentro dessa linha de pensamento, existem os que defendem que a convenção apenas pode proibir a locação curta (menos de 30 dias) e não pode proibir a locação por temporada (entre 30 e 90 dias) e os que defendem que se pode proibir ambas, desde que obedecido o quórum legal;
- E, por fim, a de que a locação de curta temporada ou fracionada ou que tenha outras características não residenciais já está proibida, bastando que o condomínio tenha sua destinação como residencial no ato de instituição do condomínio e/ou convenção. Nessa linha de pensamento, existem divergências sobre quais as características determinantes para que tal atividade seja considerada como não residencial.
Em breve pesquisa de julgados, pode-se notar a existência de decisões e acórdãos em todas as três linhas, mas, conforme o Estado tem avaliado, também se verifica que a maioria das decisões oscila entre a segunda e terceira corrente.
Na decisão do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº 1.819.075/RS, o ministro Luís Felipe Salomão, relator do processo, votou pela impossibilidade de o condomínio proibir a atividade, se filiando claramente à primeira corrente e também admitindo o fracionamento de fato do imóvel, permitindo a locação de cômodos.
Por outro lado, o relator foi vencido, pois o Ministro Raul Araújo votou de forma contrária e foi acompanhado pela Ministra Isabel Gallotti e o Ministro Antonio Carlos.
Todos os três ministros se filiaram à terceira corrente, entendendo que o caso do processo não poderia ser considerado como residencial.
Em todas as correntes, não há qualquer relevância o meio pelo qual se negocia o imóvel (seja pessoalmente, via anúncio em jornal, sítio eletrônico, aplicativo ou qualquer plataforma digital).
No entanto, o Ministro Salomão aceitou a habilitação da empresa AirBnB no processo, o que entendemos ter sido um equívoco.
Considerando que nos filiamos à terceira e última corrente, tese vitoriosa no acórdão do STJ, especificaremos nossa visão no tópico a seguir.
Conclusão
Na hipótese de se entender que a locação de quartos, cobrança de diárias e fornecimento de serviços são considerados atividades residenciais, todo e qualquer prédio pode ser transformado em um apart-hotel ou similar.
Considerando a grande demanda por hospedagem, especialmente as de baixo custo, não é difícil imaginar que os bairros situados em áreas nobres ou próximos a locais turísticos (como Ipanema, Leblon, Lagoa etc., do Rio de Janeiro), serão infestados por meios de hospedagem alternativos, aumentando exponencialmente a rotatividade e ocupação, gerando maiores riscos à segurança para os residentes nesses locais.
Se a convenção do condomínio ou, na falta desta, o memorial descritivo não preserva expressamente nenhum direito especial ao condômino, independente do nome que se dê (locação por temporada, cama e café etc.) ou o meio pelo qual se negocia (jornal, aplicativo etc.), constitui infração condominial qualquer ato que inclua uma das características a seguir:
- Fornecimento de qualquer serviço (reparos, refeições, camareira, guia, transporte etc.);
- Período de locação/cessão inferior a 30 dias e/ou cobrança por diárias ou horas;
- Locação/cessão de parte do imóvel (cômodo, quarto, dormitório etc.);
- Ocupação por muitas pessoas que não sejam de uma mesma família.
Mesmo que não recebesse ganho financeiro (hipótese de um abrigo), ao permitir tal atividade, o proprietário do apartamento descaracteriza a natureza da destinação que cabe ao imóvel dentro do condomínio.
Em relação à alegação que não existem serviços de hospedagem, realmente nem sempre eles existem, no entanto, a bem da verdade, não há como oferecer uma locação de curta temporada sem deixar à disposição do hóspede, no mínimo, serviços básicos para emergências do imóvel como consertos rápidos para manutenção de habitabilidade.
Se a cada proprietário for permitido locar parte do apartamento, tal direito será o equivalente a desmembrar sua unidade de fato, resultando em uma verdadeira criação de novas unidades imobiliárias, multiplicando a quantidade existente em um prédio.
Da mesma forma, se permitido o direito de locar um apartamento por períodos diários, a rotatividade de pessoas rivalizará a de um hotel, gerando um potencial de risco que é inerente a uma empresa e não a um condomínio residencial ou misto.
Para efeito de considerar a atividade como proibida, a percepção de incômodo dos vizinhos é irrelevante, pois, mesmo que nenhuma perturbação seja efetivamente gerada, não se pode criar precedente que, com a intensidade de uso, terminará inviabilizando a propriedade em comum.
Prédios de apartamentos situados em bairros nobres, geralmente próximos à praia ou locais turísticos estão em risco quando permitem qualquer atividade similar.
Cada apartamento pode ser dividido de forma funcional, sendo possível, por exemplo, um prédio composto de 17 apartamentos se tornar um de 85 unidades, bastando cada proprietário ceder 5 de seus quartos para tanto.
Por fim, todos os que se depararem com casos similares devem avaliar com cuidado os limites que existem ao exercício do direito de propriedade, do contrário, cada prédio residencial pode se tornar um empreendimento hoteleiro de fato.
(*) André Luiz Junqueira é professor, advogado com mais de 14 anos de experiência e autor do livro “Condomínios – Direitos & Deveres” (www.andreluizjunqueira.com.br). Pós-graduado em Direito Civil e Empresarial pela Universidade Veiga de Almeida (UVA). MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getulio Vargas (FGV). Certificado em Negotiation and Leadership pela Universidade de Harvard (HLS). Professor convidado da Escola Superior de Advocacia (ESA) da OAB/RJ, SECOVIRio, ABADI, ABAMI e GáborRH. Membro da Comissão de Direito Urbanístico e Imobiliário (CDUDI) da OAB/RJ. Membro da Comissão de Turismo (CT) da OAB-RJ. Membro e ex-diretor jurídico da Associação Brasileira de Advogados do Mercado Imobiliário (ABAMI). Conselheiro do Núcleo de Estudo e Evolução do Direito (NEED). Colunista dos portais SíndicoNet e Universo Condomínio. Sócio titular da Coelho, Junqueira & Roque Advogados e representa cerca de 10% dos condomínios do Rio de Janeiro. www.junqueiraeroqueadvogados.com.br / contato@andreluizjunqueira.com.br.