Milícias cariocas
RJ: Condomínios populares têm locação e serviços dominados pelo crime
'Minha Casa Minha Milícia': como grupos armados dominam condomínios no Rio
Cascais, Évora e Estoril são condomínios do Minha Casa Minha Vida na Estrada dos Palmares, em Santa Cruz, zona oeste do Rio de Janeiro. Inaugurados em 2012, os três foram dominados pelo crime: segundo moradores, milicianos controlam a locação dos apartamentos e a segurança dos conjuntos. Chegaram a instalar um escritório com monitores dentro da unidade Estoril para vigiar a movimentação.
Ainda de acordo com os moradores, os responsáveis pelos condomínios fazem vista grossa e andam cobrando uma "taxa de segurança". "Esses seguranças ameaçam e intimidam moradores com armas", diz um dos condôminos. Em outras palavras, é preciso pagar a milícia para se proteger da milícia.
Os condomínios são disputados pelos principais grupos armados do Rio. Desde que o líder Ecko (Wellington da Silva Braga) foi morto em uma operação policial, em junho de 2021, a milícia de Santa Cruz se dividiu entre Tandera (Danilo Dias Lima) e Zinho (Luiz Antônio da Silva Braga), irmão de Ecko.
Tandera tem expulsado inquilinos e, certa vez, tomou para si um apartamento com toda a mobília dentro. "A antiga moradora chegou a pedir de volta, mas ele não devolveu." Os moradores não veem a quem recorrer, e não ousam registrar B.O.
Milicianos também invadiram Ipê Branco e Ipê Amarelo, condomínios Minha Casa Minha Vida em Realengo, zona oeste do Rio, onde hoje há taxas de segurança, água e aluguel: moradores que se negam a pagar são expulsos. Uma vez vazio, o apartamento é alugado ou vendido, e o valor vai para os milicianos locais e para a imobiliária, eventualmente de fachada, que faz a negociação.
"Eles invadem e vendem os apartamentos. Batem na porta dos que não pagam. As armas ficam sempre visíveis, para assustar", diz um morador.
'Sua região enfrenta problemas de segurança'
Diz-se que as milícias se infiltraram nas favelas onde o Estado é ausente, mas avançaram nas construções do próprio Estado: além dos Minha Casa Minha Vida, tomaram conjuntos da Cehab (Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro) e do Ipase (Instituto de Previdência e Aposentadoria dos Servidores do Estado). Elas se fincaram no asfalto.
Bem perto da Serra da Misericórdia, cercado por morros, o condomínio Ipase, em Vila Kosmos, zona norte do Rio, mudou drasticamente desde que foi inaugurado, em 1954. Tudo começou com a milícia oferecendo serviços clandestinos de internet e TV por assinatura, o famoso "gatonet".
Em agosto de 2022, os cabos das companhias de telecomunicação foram cortados. Desde então, apenas uma pequena empresa oferece internet à área. Em setembro, a polícia precisou escoltar técnicos de telecomunicação para garantir o conserto dos fios, mas não demorou muito para que a estrutura fosse destruída mais uma vez.
As companhias alegam risco à segurança de seus funcionários e não voltam para um novo conserto. "Prezado cliente, sua região enfrenta problemas de segurança pública e por medida preventiva as equipes técnicas estão impossibilitadas de entrar na região e prestar qualquer atendimento no local em razão de ameaças físicas aos técnicos", diz a mensagem padrão do app de uma delas.
Tá tudo dominado
Moradores contam que a milícia não ostentava armas no início no Ipase. Entretanto, o Comando Vermelho passou a vender drogas nos prédios. Antes considerado um condomínio tranquilo para a classe média da zona norte, o conjunto vive uma debandada devido a tiroteios entre milicianos e traficantes — e entre eles e policiais, que eventualmente entram ali.
"Cresci num lugar que a gente tem amor e não quero sair, mas vou ter que me mudar", lamenta uma moradora. "Ao mesmo tempo, ir para qual outro lugar da cidade, se todos têm violência?", questiona.
Aconteceu no Ipase e acontece em outros conjuntos: moradores se veem obrigados a contratar os serviços oferecidos pela própria milícia (além do "gatonet", gás, van, água, aluguel e taxa de segurança). Ao menos R$ 200 são repassados aos milicianos por mês, segundo quem vive lá.
"Esses caras ganham dinheiro fácil, monopolizam todos os negócios da área", sintetiza Ricardo Carrareto, ex-delegado da Draco (Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas), unidade que investiga a relação entre empresas que se tornam as únicas autorizadas ali e as milícias.
A investigação envolve quebra de sigilo telemático, interceptação, busca e apreensão. "Ainda assim, muitas vezes com isso tudo, talvez você não chegue ao responsável", diz Carrareto, que recentemente assumiu a DCOC-LD (Delegacia de Combate às Organizações Criminosas e à Lavagem de Dinheiro) da Polícia Civil do Rio.
Após dominar favelas, as milícias "investiram" nos conjuntos habitacionais de olho nos negócios lucrativos e mais organizados.
"Num lugar do tamanho da Maré [complexo de 16 favelas no Rio], há dificuldades operacionais. Já um conjunto, como os Minha Casa Minha Vida, já pronto, estruturado, com toda parte elétrica, é mais fácil operacionalizar."
Procurada, a Secretaria de Habitação do Rio diz que o monitoramento desses casos "é uma questão de segurança pública". Segundo a Polícia Civil do Rio, a força-tarefa que investiga milícias ultrapassou, em 2022, a marca de 1.300 milicianos presos e de R$ 2,5 bilhões de prejuízo às quadrilhas.
Outros carnavais
As ruas que cortam o conjunto habitacional Maestro Olímpio dos Santos — Urucânia, em Paciência, zona oeste do Rio, foram batizadas com nomes de militantes mortos na ditadura militar (1964-1985).
Inaugurada pela Cehab em 1981, ela cresceu muito: nas casas de apenas um andar construíram-se lajes. Depois viraram sobrados e prédios de vários andares. Hoje, há supermercados e a filial de um gigante de eletrodomésticos na Cilon Cunha Brum (um guerrilheiro do Araguaia), uma via atravessada por ônibus, moto-táxis e vans.
Nada disso passa batido pela milícia, cuja presença crescente assusta os moradores que até outro dia só ouviam histórias de violência "para lá da estação de trem" — onde está a favela do Antares, em Santa Cruz, dominada até recentemente pelo tráfico de drogas e por isso alvo frequente de operações policiais. Aí a milícia chegou.
"A festa de Carnaval da Urucânia estava entre as mais famosas da zona oeste do Rio, mas caiu muito por causa da milícia", conta um morador de Paciência. "Teve um Carnaval em que as pessoas não podiam entrar com isopor, cooler ou bolsa térmica com cerveja na festa de rua. A cerveja tinha que ser comprada no comércio deles."
Urucânia foi dominada não por acaso: em construções verticais é mais fácil concentrar o poder e a exploração do comércio, da cesta básica ao carvão vegetal para churrasco ou a cerveja do Carnaval, do servidor de internet à venda e aluguel de apartamentos.
Policiais ouvidos pela reportagem observam que a atuação das milícias nessas áreas é menos ostensiva que nas favelas. Em outras palavras, a ação é mais violenta em áreas mais pobres. Em tese.
'Do nada chegaram uns caras armados'
Moradores da Urucânia brincam que a região só entrou no imaginário da cidade depois que a dupla de funk Claudinho & Buchecha lançou a canção "Nosso Sonho", em 1996, na qual saudavam favelas e conjuntos do Rio ("Marechal, Urucânia, Irajá"). Hoje também é conhecida por ser o local onde o zagueiro Thiago Silva cresceu.
Famílias antigas na vila relatam que a violência está bem pior. Ainda assim, consideram melhor que a das favelas, onde a presença da milícia é ostensiva. Entretanto, os milicianos deixaram a discrição de lado e passaram a andar armados.
"Estava no bar com amigos e do nada chegaram uns caras armados, de touca. Decidimos sair dali. Nunca tinha visto gente armada assim", conta um morador.
Após a morte de Ecko, um dos milicianos mais procurados do Rio, ocorreu uma série de divisões na milícia da zona oeste, incluindo tiroteios, vans incendiadas e postos de combustíveis destruídos.
Favelas e conjuntos habitacionais viveram tempos de tensão. "Dias depois da morte do Ecko, recebi mensagens da minha mãe pedindo para eu não voltar para casa, porque tinham matado um monte de gente perto daqui. Desci na Urucânia desconfiado. Quando cheguei no conjunto, vi crianças brincando de polícia e ladrão na rua. Achei que a bala estaria comendo", lembra.
"Apesar de tudo, sou muito enraizado aqui, com a vizinhança, com as vendinhas onde você compra fiado. Todo mundo se conhece, jogou bola junto uma vez na vida. Tento carregar o meu lugar comigo."
https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2023/01/09/minha-casa-minha-milicia-grupos-armados-dominaram-condominios-no-rio.htm