Conheça o "barulho bom" da cidade e dos condomínios
Artigo reflete que não é qualquer ruído que vira aborrecimento. Muitos deles nos fazem vivos
Por Jaques Bushatsky*
Enfim, nos acostumamos a reclamar de ruídos, a medi-los, a compará-los com os limites postos na legislação, a concatenar o vocábulo “barulho” com os termos “reclamação”, “antissocial”, “polícia”, “síndico”. A razão disso? O mau uso do imóvel, o desrespeito ao direito do condomínio, do vizinho.
Mas, convido ao pensamento, nem tudo é irritação ou aborrecimento. Moramos em cidades, por esta ou aquela razão é aqui que a nossa vida segue, é aqui que crescemos, fazemos, acumulamos memórias...
Há sessentões saudosos do barulho dos bondes de São Paulo, é fácil devanear com a gaitinha do afiador de facas, o apito do guarda noturno transmite certa segurança.
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Alguns ainda se dividem: era melhor o vendedor percorrendo as ruas e gritando “olha o gás” ou o alto falante do caminhão tocando “fur elise” e a distorcendo na forma e na intenção, duplamente (uma devido à estridência do equipamento usado; outra, pois afinal Beethoven compôs a música em 1810 para homenagear a filha do seu médico, não para anunciar combustíveis...).
E, que morador de cidade já não foi dormir em sítios e acordou cedinho, achando que passava por lá um carrinho de mão com as rodas mal engraxadas, para depois descobrir que eram somente galinhas d´angola, talvez até eliminando os escorpiões no terreno?
Ou reclamou na praia da batida das ondas, do passarinho madrugador? Os barulhos de onde vivemos fazem parte de nossa experiencia e compõem nossa memória, estranhamos a sua falta.
Lygia Fagundes Telles, em prosa intimista "A disciplina do amor", escreveu:
“O vizinho do andar superior – e que nunca cheguei a ver – fazia às vezes ruídos esquisitíssimos, não consegui decifrá-los nas minhas noites acesas, eram ruídos noturnos: coisas esponjosas que se arrastavam pelo chão, pensei em panos úmidos, mas os ruídos passaram por variações, criaram vida e se puseram deslizantes como cobras indo e vindo num ritmo comandado. Muitas cobras – seria um amestrador de circo?” (...) “Os novos inquilinos que chegaram são silenciosos. Tão silenciosos que ouço no silêncio o som de uma pena raspando no papel uma letra caprichada – um velho escritor?” (...) “Fiquei adiando a pergunta que ia fazer ao porteiro sobre os meus vizinhos, mas, eles se mudaram, chegaram inquilinos novos e até agora não ouvi nada. Absolutamente nada. Continuo esperando. ”
Ruídos não são fatalmente ruins, talvez sejam como tantos compostos químicos: na dose certa, fazem bem, na errada, matam. Por isso, nesse imenso foro de discussões condominiais, que tal olharmos, a começar por este aspecto sonoro, para tudo de bom que temos ao viver aqui?
E não estranhe esta convocação numa publicação jurídica, pois tudo que o Direito almeja é, tão somente, a paz social, o bom desenvolvimento das pessoas.
Realmente, este jeito melhor humorado de enxergar nos recordará do que nos levou a morar neste prédio, do que sentimos saudades quando viajamos, de muita coisa boa que nos cerca no dia a dia.
Lógico, este novo despertar para o que é bom findará conduzindo nosso trato com vizinhos e com os trabalhadores do prédio, facilitará o entendimento de cada um sobre aquilo que na vivência, uns denominam percalços, mas os mais saudáveis chamam de coisas, coisinhas da vida.
Cidades existem para melhorar a nossa vida; condomínios, para viabilizá-la do melhor modo possível, permitindo o máximo de benefícios em troca do mínimo de desgastes. E uns barulhinhos, servem para nos enternecermos e vivermos cada vez mais plenamente.
(*) Jaques Bushatsky é advogado; pró-reitor da UniSecovi; integrante do Conselho Jurídico da Presidência do Secovi-SP; sócio correspondente da ABAMI (Associação Brasileira dos Advogados do Mercado Imobiliário para S. Paulo); coordenador da Comissão de Locação e Compartilhamento de Espaços do Ibradim e sócio da Advocacia Bushatsky.