Estatuto da Criança e do Adolescente em condomínios
Alguns pais recorrem ao ECA para defender seus filhos em conflitos com vizinhos. A falta de equilíbrio desse uso pode prejudicar o condomínio
O síndico sabe bem o quanto conflitos que envolvem crianças são difíceis de lidar. E é fácil entender. Quando o assunto envolve filhos, uma parte dos pais costuma ser movida por uma carga emocional desproporcional.
Agora imagine esse balaio de gatos com um ingrediente extra – o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Um exemplo corriqueiro: uma criança jogando futebol na área externa, por onde os condôminos circulam. Certamente naquele local não é permitido que as crianças brinquem, muito menos com bola.
O condomínio adverte o pai sobre a regra de locais determinados para as crianças brincarem, e ele recorre ao ECA para afirmar o direito que seu filho tem de brincar.
“Existe uma parcela de pais que acha que pode tudo e, nesse caso, recorre ao ECA em qualquer coisa que aconteça; mas não olha para o próprio filho. Isso é muito ruim”, analisa a educadora e pedagoga Anna Mariano.
Mas afinal, até onde se apoiar no Estatuto está certo? A primeira coisa a se fazer é saber o que é o ECA. Só assim, você terá condições de entender o que os pais exigem a partir das normas.
O que é o ECA
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069) foi criado em 1990. Seu grande objetivo é proteger integralmente as crianças (0 a 12 anos incompletos) e os adolescentes (12 a 18 anos e, em alguns casos, até 21 anos).
O ECA é um documento extenso, com 241 páginas. No caso do segmento condominial, alguns trechos interessam especificamente. Separamos dois principais:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Art. 16º O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:
I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais; IV - brincar, praticar esportes e divertir-se; V - participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;
Em quais situações é aplicável em condomínios?
A rigor, toda pessoa pode recorrer ao ECA e à Constituição Federal. O advogado Ricardo M. Cabezón, que presidiu o Comissão Especial de Direitos Infantojuvenis da OAB-SP, especialista em Direitos da Criança e do Adolescente, esclarece:
“A Constituição estampa nos termos do Art. 227 o princípio da proteção integral e assegura direito à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocar a salvo de toda forma de discriminação e opressão, entre outras garantias”.
No condomínio, algumas situações merecem a aplicação do Estatuto:
- Quando as crianças são terminantemente proibidas de brincar, ainda que sejam jogos de tabuleiro, por exemplo, ou fazer qualquer ruído como rir, em qualquer horário ou local no condomínio;
- Quando um funcionário ou o próprio síndico abusar do poder sobre a criança ou submetê-la a alguma humilhação, medo, violência física ou qualquer forma de estresse.
Nesses casos, o ECA poderá ser usado para um processo judicial contra a pessoa e o condomínio.
Em quais situações não é correto usar o ECA em condomínios?
“O ECA é uma legislação que se aplica sempre – tanto do portão para fora do condomínio, quanto do portão para dentro; da porta para fora do apartamento e da porta para dentro. Porém, existem regras específicas de disciplina que estão no regulamento interno do condomínio e também se aplicam do portão para dentro”, ressalva Márcio Rachkorsky, advogado, considerando a vida em condomínio.
Muitas situações podem motivar os pais a recorrerem ao ECA: barulho, brigas, má utilização das áreas comuns, bullying ou mesmo brigas de babás contra crianças, tentando proteger ou tomar partido das crianças que elas cuidam.
- ESTATUTO DO IDOSO: À exemplo do ECA, alguns moradores também se apoiam no Estatuto do Idoso, principalmente para conseguirem uma vaga especial na garagem. Mas é uma atitude igualmente exagerada.
“As pessoas não podem se fazer valer de uma regra muito maior para descumprir uma regrinha muito menor”, reforça Rachkorsky.
Para a psicanalista Carolina Scheuer, a lei entra quando a conversa termina. Ou seja, antes de recorrer ao Estatuto, há um caminho de entendimento para resolver as questões.
“Muitos pais acham que os filhos precisam ser atendidos em seus desejos e protegidos contra quaisquer frustrações ou sofrimentos. Mas isso não pode cegá-los para olhar as demandas dos outros moradores, como adultos sem filhos ou idosos”, diz Carolina.
Dicas para amenizar o conflito e fazer valer as regras do condomínio
“Em casos de situações desagradáveis, os pais sempre se acham no direito de buscar o Estatuto; mas sempre se eximem dos deveres e direito de guarda (Art. 1634 do Código Civil e Art. 22 do Estatuto da Criança) que lhes resultam no direito de preservar e guardar suas crianças”, diz Roberto Piernikarz, diretor da BBZ, administradora de condomínios.
Piernikarz destaca que é possível propor acordos de convivência por meio de Regimento Interno e Normas de utilização das áreas comuns, contendo os horários permitidos. O registro das câmeras são sempre de grande valia.
Também pode ser aprovado em assembleia a contratação de equipe especializada na tratativa com as crianças e adolescentes, recreação e até de orientadores que ajudem o trabalho do síndico na contenção de conflitos.
O advogado Ricardo Cabezón acrescenta: “Estabelecer política de horário e local adequado para a prática de jogos, brincadeiras, comemorações em datas festivas, bate-bolas, uso do elevador social etc., é uma preciosa ferramenta de pacificação social que encontra amparo em nossa legislação”.
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Conclusão
Com certeza, todo cidadão deve considerar um documento tão importante como o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Mas, pensando no condomínio, cada qual tem o seu conjunto de regras que compõem o regimento interno. Essas regras foram constituídas para preservar o bem-estar da coletividade, e não do indivíduo. Por isso, é tão importante que sejam respeitadas.
Ao mesmo tempo, ao conhecer o ECA, o síndico vai ampliar o seu olhar. Ele se sentirá mais bem preparado para lidar com os problemas da sua comunidade, e até atuar como um mediador mais seguro e justo, se for preciso.
Fonte: Ricardo M. Cabezón (advogado, presidiu o Comissão Especial de Direitos Infantojuvenis da OAB-SP, especialista em Direitos da Criança e do Adolescente); Márcio Rachkorsky (advogado); Roberto Piernikarz (diretor da BBZ, administradora de condomínios0; (Anna Mariano (educadora e pedagoga) e Carolina Scheuer (psicanalista).