WhatsApp do condomínio
Crônica compara grupos com a realidade do Brasil
O Brasil visto a partir do WhatsApp do meu condomínio
O grupo de WhatsApp do meu condomínio é uma espécie de foto em alta resolução de uma parcela do Brasil. Analisando as mãozinhas em prece, os vários "gratidão!", os vídeos negando a covid-19 e as outras tantas mensagens — vou chamá-las de zap —, explico o porquê.
ZAP 1: no início do mês, o porteiro do edifício no qual moro me procurou para dizer que precisaria se ausentar um dia na semana para resolver questões de saúde dele e da sua família. Foi a primeira vez que ele, em mais de quatro anos de trabalho, fez tal pedido. O senhor Maurício (vamos chamá-lo assim), que há poucos meses perdeu a mãe, é nosso único funcionário.
Comuniquei o fato no grupo que mantemos para resolver questões pertinentes ao edifício, uma espécie de senhor alquebrado construído em meados dos anos 60. Lembrei, já antecipando alguma resistência, que o porteiro perdera a mãe há pouco. Logo, chegou a resposta de um morador: "Ele tem saído do prédio antes das 18h, vocês notaram?"
Foi a única manifestação a respeito do comunicado. Não trazia qualquer preocupação relativa ao funcionário ou a alguém de sua família. Como estamos ainda vivendo em meio a uma pandemia — lembram?— e como havia uma perda pessoal significativa, achei que a associação poderia surgir.
Expliquei que ele traria um documento atestando os exames.
Na tela do telefone, a resposta apareceu em forma de figurinha de mãos em prece.
Aquele símbolo "do bem" sugeria que, uma vez vestido com sua farda cinza, o senhor Maurício deixa, para muitos, de ser uma pessoa que pode ficar doente, que tem pai, mãe, filho, esposa, dor de cabeça ou qualquer necessidade.
ZAP 2: O vizinho que reclamou do horário do porteiro é um homem muito distinto e simpático, juiz aposentado. Durante os primeiros meses da pandemia, com comércio e serviços fechados e bem menos transporte público nas ruas, continuou recebendo a empregada doméstica. Às sete da manhã, ela já estava entrando no elevador. Momentos depois, descia com o cachorrinho poodle acinzentado para passear.
Eu a encontrei em um desses dias. "Não conseguiu ser liberada?", perguntei, um pouco jornalista, um pouco socióloga, um pouco fofoqueira. Ela, de máscara, olhou pra mim e disse: "Tu acha?", e deu um muxoxo. Apertou o recipiente com álcool em gel na porta do edifício, passou o líquido nas mãos e seguiu.
Naquele momento, o mesmo vizinho infestava o WA do condomínio com vídeos do ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra, amenizando o impacto da covid-19, o mesmo vírus que o levou ao hospital na semana passada. A difusão do negacionismo ficou tão punk que algumas moradoras e moradores decidiram educadamente intervir e avisar que aquele canal era destinado única e somente a assuntos do condomínio.
O vizinho ficou contrariado porque não podia mais espalhar a genialidade do ex-ministro. Escreveu "sou cristão" e abandonou o grupo.
ZAP 3: Ainda na pandemia e dias depois do assassinato de George Floyd, cidades diversas no mundo foram palco de protestos antirracistas. Grupos ligados a movimentos negros passaram a organizar, também aqui na capital pernambucana, um ato não só lembrando Floyd, mas todas as pessoas pretas vítimas do racismo no Brasil.
Logo, chegou no grupo um anúncio o evento. Dizia algo como "Racismo não" e chamava para o encontro nas ruas, às 15h. O anúncio foi enviado por uma proprietária que reside no interior e aluga o imóvel. Era uma forma, ela dizia, de nos prevenir da "baderna". Avisava: "Tenham cuidado. Essa manifestação vai acontecer aí por perto, evitem ficar nas ruas.".
Confesso que não resisti e respondi: "Não estava sabendo. Levarei toda a família. Obrigada por avisar!"
(Não costumo usar exclamação. Mas achei que, esteticamente, cabia bem ali).
ZAP 4: Um grupo de jovens estudantes LGBT alugou um apartamento acima do meu. Dois deles eram pretos, equilibrando um pouco mais as coisas aqui no prédio: até então, éramos apenas eu e meu filho. Um deles um dia me reconheceu por conta de um livro que escrevi. Conversamos um pouco e em semanas nos tornamos mais próximos.
Júlio estava terminando um curso na área de desenvolvimento de software e vinha de um contexto muito humilde, de pai feirante e mãe dona de casa, ambos evangélicos. Era a primeira pessoa da família a entrar na universidade.
Estava feliz por ter um trabalho, por morar mais perto desse trabalho e tentava, aos poucos, compartilhar sua orientação sexual com pai e mãe. "Ela ainda me pergunta por namoradas, não consegue aceitar, me pressiona. Eu fico muito mal, mas eu a amo e sei que isso uma hora vai passar. Eu quero cuidar deles, sabe? Trabalham muito, já reciclaram lixo... Um dia vou dar um carro a meu pai, é o sonho dele."
Confesso que aquilo me emocionou um bocado.
No Carnaval, recebi no WhatsApp a notícia de que o grupo iria sair do prédio: a proprietária recebera várias reclamações de um vizinho sobre "o comportamento" dos estudantes e pediu o apartamento de volta. Muitos estranharam, pois a rotina por aqui seguia normal.
Mandei uma mensagem para eles perguntando se não havia como reverter a questão, mas já era tarde.
Júlio contou que queria sair, não se sentia mais confortável morando aqui: no fim de semana anterior, estava com o namorado e um amigo no elevador quando a porta abriu no andar do dono do poodle cinza. Ele não entrou no elevador, nem falou nada. Olhou o casal, apertou o botão e fechou a porta.
ZAP 5: Há dois anos, um senhor — vamos chamá-lo de Cláudio — veio cobrir as férias de Maurício, o porteiro. Ficou um mês conosco. Passado esse período, o encontrei uma manhã à frente do edifício. Dei bom dia e perguntei, meio protocolarmente, se estava tudo bem. "Não", ele respondeu (a sinceridade às vezes é uma bomba).
Contou que, duas semanas após o fim do trabalho, ainda não recebera seu pagamento e estava sem dinheiro algum. "Já liguei para a administradora e falaram que talvez saia hoje" (no edifício, como somos poucos e muito ocupados, contratamos uma empresa que gerencia condomínios). Na época, esse serviço era feito por uma senhora — vamos chamá-la de Poliana. Ela pediu ao senhor Cláudio que a esperasse no edifício, ela levaria o pagamento. Marcou às 7h da manhã. Eram 8h30 quando o encontrei.
Quando cheguei em casa, escrevi sobre o assunto no grupo e perguntei a Poliana o que estava acontecendo. Como não havia problemas como inadimplência ou algo parecido, o atraso no pagamento não se explicava.
A então síndica informou que estava resolvendo a questão e que estava entrando em contato com o senhor Cláudio. A proprietária que vive no interior disse que não queria fazer juízo de valor, mas soube que ele às vezes dormia em nosso edifício durante o tempo em que esteve aqui.
Era verdade: Cláudio trabalhava como vigia a cada dois dias em um condomínio vizinho durante a noite. Bem cedo, já vinha para nosso condomínio, onde havia um colchão no qual descansava cerca de três horas antes de começar seu expediente aqui. Topou a maratona porque precisava do dinheiro.
Dois dias depois, recebemos uma mensagem do senhor Maurício. Ele contava que Cláudio havia sofrido um ataque cardíaco e morrido no dia anterior. Era seu aniversário de 65 anos.
Logo, o grupo do condomínio ficou repleto de figurinhas de mãos em prece e frases como "Deus o guarde" e "que descanse em paz".
O grupo de WhatsApp do meu condomínio é uma espécie de foto em alta resolução de uma parcela do Brasil.
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